NÓS, NEGROS - CONSUMO
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por João Luiz Vieira
Uma nova boneca negra chega ao mercado com o desafio de vender bem e superar o mito da democracia racial num país habituado a discriminar pessoas pela cor da pele
Perfil
Ela tem 28 centímetros, cabelos de náilon e corpo negro à base de injeção de tinta no plástico. Custa R$ 29 a unidade
Edna Francisco da Silva aparenta menos que os 41 anos registrados na carteira de identidade. Começou a trabalhar aos 8 como doméstica em casas de classe média em São Paulo e na adolescência foi servir à vaidade alheia, pintando unhas de mãos e pés de mulheres de origem abastada. Há seis anos conseguiu o primeiro emprego formal, com os direitos trabalhistas garantidos, na fábrica de brinquedos Estrela. Edna acorda todos os dias às 5h50. Sai de casa, um sobrado de três dormitórios em Guarulhos, sem tomar café da manhã. Mal se despede do marido, marceneiro que vive de pequenos serviços. Faz a primeira refeição do dia na própria Estrela, meia hora antes de pegar no batente. Sua função: pôr os fios de náilon, à guisa de cabelos, em corpinhos de plástico de 28 centímetros de altura, na esteira da linha de montagem da Susi Olodum, boneca negra, como Edna, que acaba de chegar às lojas.
Em nove horas de trabalho diárias, 585 Susis passam na frente de Edna. Em troca de R$ 340 mensais ela pode, enfim, mexer num objeto de desejo que foi um sonho de infância, mas nunca entrou em sua casa: uma boneca. "Pena que não dê para pensar na vida enquanto a máquina funciona", diz. Nos olhos de Susi Olodum, Edna e as companheiras de linha de montagem vêem refletidas as desigualdades de um país que se habituou a discriminar gente negra. Na fabricação da boneca, antes da colocação do primeiro fio de cabelo até o desembarque nas lojas de brinquedos e nos quartos infantis, reproduz-se o mito da democracia racial.
Das graças
"É preciso provar em dobro que merecemos emprego"
Na Estrela 40% dos funcionários são negros e pardos - taxa muito próxima dos 45% registrados pelo IBGE no censo de 1997. Nove entre dez funcionários negros da fábrica ganham menos que os brancos. Trabalham quase sempre no chão da fábrica. Não há negros na diretoria da empresa. Esse cenário assemelha-se ao de qualquer indústria do país. "É circunstancial não termos negros em cargos mais elevados", diz Aires Fernandes, branco, diretor de marketing. Os números mostram que, no emprego, a cor discrimina mais que o sexo.
A taxa de desemprego entre negros é 45% maior que entre brancos e amarelos. Em São Paulo, os negros representam 40% dos desempregados da população economicamente ativa. "Por sermos negras, é preciso provar em dobro que merecemos o emprego ", diz Maria das Graças Paulo, de 47 anos, assistente de criação e modelagem e uma das responsáveis pelo figurino da Susi Olodum. Maria das Graças informa nunca ter sentido na pele a discriminação. "Mas sentia falta de uma Susi para negras", diz. Ela nunca brincou com bonecas de sua cor. Das Graças, filha de uma dona-de-casa e um pedreiro, teve infância difícil. Foi mais longe que os pais. Estudou até o ensino fundamental, ganha R$ 650 mensais e mora em Guarulhos numa casa de dois dormitórios, com o pai e duas irmãs.
A idéia da Susi negra amadureceu durante cinco meses, depois que uma pesquisa da própria Estrela indicou a existência de uma fatia numerosa da população interessada em comprar produtos identificados com a cor da pele. Um estudo da agência de publicidade Grottera estima que a classe média formada por negros e pardos no Brasil some 7 milhões de pessoas, com renda familiar média de R$ 2.300. A Estrela selou parceria com o grupo Olodum, da Bahia, e a boneca começou a ser desenvolvida nas versões negra e branca. As duas, com produção de 50 mil peças por ano cada uma, são vendidas a R$ 29 a unidade. O Olodum, sob a batuta do presidente João Jorge Rodrigues, ganhará 5% sobre o resultado da venda das bonecas. O dinheiro será depositado na conta do Projeto Escola Criativa Olodum.
O projeto, que ministra cursos de percussão, dança e informática a crianças carentes de Salvador, já beneficiou 295 meninos e meninas. "Não se trata de uma atitude politicamente correta", diz Fernandes, da Estrela. "O mercado pedia uma boneca como a Susi Olodum." As raízes do preconceito são tão profundas que nem mesmo a Susi escapou à armadilha do estereótipo. As Susis brancas já existentes são professoras, veterinárias e ciclistas. A nova Susi é apenas Olodum, ainda que uma dançarina do grupo baiano ganhe mais que uma professora. Se venderá bem, não se sabe. É preciso esperar. Nos anos 90, a Estrela lançou outros bonecos negros, como Meu Bebê, Bebezinho, Tererê e Fofolete, mas eles tiveram vida curta. Representavam 20% das vendas de uma boneca branca.
O paulista Luiz Claudio Rodrigues, gerente-geral da GP Brinquedos, com cinco lojas espalhadas por São Paulo, confirma o interesse pelos modelos tingidos. "O consumidor sempre reclamou da ausência de bonecas negras", afirma. Rodrigues separou 50 peças do produto para cada uma das lojas e acredita que as venderá com facilidade. "As demais bonecas negras não saíam por falta de apoio da mídia", resume. Rodrigues é negro e ganha R$ 2 mil mensais como gerente-geral. É o único negro dentro da empresa nessa função. Trabalha com brinquedos há 15 anos. Tem duas filhas. Vanessa, de 18 anos, já teve uma boneca negra. A menor, Taís, de 7, ainda não ganhou a dela. "Comecei a trabalhar com 16 anos para ajudar minha família", diz. "Poderia ter chegado mais longe, mas não concluí um curso superior porque precisei ir à luta cedo." Rodrigues ficou fora da estatística que aponta apenas 5% de universitários negros. Mas, de forma indireta, está dentro de outra: estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostra que a probabilidade de um branco ascender na profissão é 120% maior que a de um negro.
AS AGRURAS DA BARBIE AFRO-AMERICANA
A boneca politicamente correta não pegou nos Estados Unidos
A primeira Barbie negra foi lançada no mercado americano em 1982. A fábrica de brinquedos Mattel resolveu apostar nos 12,8% de afro-americanos contados no censo dos Estados Unidos e escureceu a pele da boneca mais popular do mundo. Estima-se que o poder de compra dessa camada da população esteja próximo dos US$ 500 bilhões. Nos Estados Unidos, país em que se tornou regra a mania do politicamente correto, nem sempre as novidades levam em conta apenas os dólares. "Queremos atingir as minorias, dos deficientes físicos às comunidades negra e latina", diz a gerente de produtos da Mattel, Maribeth Elmes. As Barbies negras, porém, encalharam.
No Brasil, o desempenho foi semelhante. É possível encontrar exemplares da Barbie negra na única loja especializada em bonecas afros de São Paulo, a Tilai. A empresária Dilma Pereira, dona do negócio, reconhece que quando uma boneca escura vende muito chega a 20 mil peças em todo o Brasil - número 65 vezes inferior ao das Barbies brancas vendidas anualmente. A Baby Brinke, que desde sua fundação já colocou várias bonecas negras no mercado brasileiro, atingiu com um de seus maiores sucessos, a Lola, lançada em 1995, apenas 5% da expectativa de vendas.
BAHIA - A África é aqui
por Luciana Pinsky
Salvador transformou-se em reduto de consumo da cultura e de produtos para os negros
Tranças
O salão da Negra Jhô é parada obrigatória da Salvador africana
Negra Jhô ganha a vida trançando cabelos. Começou pelas irmãs. Trabalhava à noite para que no dia seguinte o cabelo estivesse mais fácil de pentear. Depois de alguns anos, integrantes de grupos afros passaram a procurá-la. Ela foi às ruas do Pelourinho e ganhou a adesão de turistas. Hoje é proprietária do Grupo Cultural Ki-Mundu. No verão, seu salão lota de forma heterogênea: com negros baianos e estrangeiros brancos.
Como Jhô, muita gente vive do mercado afro em Salvador. Na cidade em que 80% da população é negra, o maior índice do país, a afirmação da identidade está por toda parte. Mostra-se na camiseta "100% negro". Exibiu-se com orgulho nos 32 blocos afros e 14 afoxés que desfilaram no último Carnaval. Dá as caras nos terreiros de candomblé e nas lojas de estampas africanas.
Salvador tornou-se um ótimo mercado para produtos destinados a negros. A esse alvo se dirige a série de cosméticos lançada há cinco anos pelo cabeleireiro Luiz Marques. "Eles representam 99% de minha clientela", diz. O carro-chefe é o hidratante Umidfica, nome da empresa. Marques lida com um faturamento mensal de R$ 140 mil e 38 funcionários. Tem sete produtos que apresentam duas negras no rótulo. No oitavo, que acaba de lançar, as figuras negras foram substituídas pela de uma mulher branca de cabelos encaracolados. "Os produtos são para todas as mulheres que têm cabelos cacheados", alega. "Soube de uma consumidora em Brasília que arranca o rótulo para que suas amigas não o vejam."
O comportamento da Salvador africana tem paralelo nos blocos de Carnaval que pululam na cidade. A Associação Cultural Bloco Carnavalesco Ilê Aiyê foi fundada em 1974 e saiu no Carnaval do ano seguinte. "Queríamos brincar o Carnaval e não tínhamos espaço", diz a diretora Arany Santana. A população negra aderiu maciçamente ao movimento, que hoje mantém um projeto escolar para crianças até a 3a série do ensino fundamental. Só negros são aceitos no bloco. As conquistas culturais são visíveis, mas ainda há muito a ser feito. Uma pesquisa coordenada pelo professor Jocélio Teles dos Santos, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), mostra que as mulheres negras ocupam os piores postos de trabalho, e a qualificação da mão-de-obra branca ainda é muito superior. Entre os calouros de 1997 da UFBA, 44,6% eram negros. Pouco para uma população com apenas 20% de brancos.
9 de julho de 2006
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2 comentários:
eu adorei este site um ele pode me ajudar no meu trabalho.E tomara que com essas bonecas os pais possa amostra para os filhos que aos olhos de deus nos somos todos iguais...
Onde é possível comprar uma boneca negra? faz segundo modelo?
Obrigada.
mdbr@hotmail.com.br
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