28 de dezembro de 2006

Meninada do Sertão: um oásis de cidadania (rádio)

por Cássia Borsero*




Nova Olinda é um oásis de sons e imagens encravado no meio do silêncio do sertão cearense. A cidadezinha de apenas 12 mil habitantes - dos quais apenas mil vivem na área urbana - abriga a Fundação Casa Grande - Memorial do Homem Kariri, criado em 1992 por dois visionários com nomes quase literários, o casal Alemberg Quindins e Rosiane Limaverde. Durante anos, eles pesquisaram a música e a geografia da região, reunindo objetos, mitos e lendas da Chapada do Araripe, Vale do Cariri, onde fica Nova Olinda, região rica em fósseis, objetos e pinturas rupestres. A atenção despertada por esse inusitado museu do sertanejo "pré histórico", cuja sede é a primeira casa construída em Nova Olinda em 1717, foi o estopim para a criação da Escola de Comunicação Meninada do Sertão.

É uma das experiências mais ousadas envolvendo crianças e jovens no comando de programas de rádio e TV no Brasil, com foco na recuperação e integração da cultura local às influências externas que o contato com o turismo e a própria mídia acabam trazendo.

Cerca de 70 crianças da comunidade, com idades entre 5 e 18 anos, são capacitados permanentemente a lidar com a produção de mídia, que aprendem em oficinas ministradas pelos próprios jovens que cresceram no projeto. Além de rádio e TV a Fundação também oferece atividades em editoração, artes cênicas, música e turismo.

Mais que operar uma câmera de vídeo, lidar com equipamentos de rádio, fazer um jornal ou escrever um roteiro, as crianças da Escola de Comunicação Meninada do Sertão realizam um impressionante exercício de cidadania. Aliando tradição e modernidade, o jeito do sertão com as novas tecnologias de comunicação, essa geração de comunicadores é responsável pela Rádio Casa Grande FM e a TV Casa Grande, ambas com programas diários, e também uma editora de jornais e quadrinhos. A Fundação conquistou parceiros importantes, e hoje conta com o apoio do UNICEF, o Instituto Ayrton Senna, os governos estadual e municipal e as universidades Federal do Ceará e Regional do Cariri.

Nova Olinda parece ter nascido para eternizar sua cultura pela comunicação. Como já disse Alemberg Quindins, aqui ela começou com os objetos e pinturas de seus mais antigos ancenstrais. E vai continuar viva nas histórias que suas crianças e jovens estão aprendendo a perpetuar.

UM DISCO VOADOR NO SERTÃO

"No início, o museu da Fundação começou a atrair a imprensa. Vinha repórter de rádio, de TV. A criançada ficou louca com aquilo! A mídia parecia um disco voador que tinha baixado na cidade, a gente nunca tinha visto uma câmera na vida. Aí as crianças chegaram no Alemberg e disseram que queriam aprender a filmar", recorda João Paulo Maroto, 21 anos, gerente da TV Casa Grande, que virou um "fuçador de mídia" aos 13 anos. "Por uma lei estadual de incentivo, o UNICEF cedeu a primeira câmera VHS pra gente. Foi então que começamos a brincar de fazer TV, vídeo. Eu sempre fui meio curioso, imagine um peixe que passa a vida no aquário, e de repente vê o mar", emerge João, com uma metáfora do que um dia será o sertão.

A TV Casa Grande funciona dentro da Fundação. Conta com uma equipe de quatro pessoas, entre 18 e 21 anos, e três aprendizes com 12 e 13 anos. Em um estúdio pintado de azul e uma salinha que serve como ilha de edição, as crianças aprendem a manipular a DV-CAM, uma câmera digital de vídeo, um aparelho DAT, para captação digital de áudio, e também um software de edição. No início, compraram um transmissor e uma antena, com alcance de apenas 5 quilômetros. Queriam ver a qualidade da imagem, até onde a comunidade conseguia alcançar os programas produzidos pelas crianças. Em 2001, a ANATEL acabou com a brincadeira e lacrou os transmissores. Agora, os programas produzidos são gravados e exibidos no teatro da Fundação, até sair a sonhada licença da ANATEL para operar como TV comunitária. João acredita que a Comenda de Honra ao Mérito Cultural que a TV Casa Grande ganhou do Ministério da Cultura possa ajudar.

Como em todas as atividades da Fundação Casa Grande, as crianças que querem participar dos "laboratórios de comunicação", ou seja, das oficinas ministradas pelos jovens já formados, devem demonstrar uma sincera vontade de aprender. Afinal, o manjado chamariz de "uma idéia na cabeça, uma câmera na mão" só funciona em Nova Olinda se os pequenos repórteres e produtores não estiverem brincando, mas de olho no que acontece na cidade.

"Eu acho que fazer TV aqui é também uma oficina de responsabilidade. O jovem conhece a comunidade e tem a liberdade para mostrar o que ele vê sem a interferência da grande mídia, ou da política local. Uma vez fizemos uma reportagem sobre a tradicional Festa de São Sebastiaõ, que causou grande impacto. Abordamos a descaracterização da festa, e principalmente o fato de haver crianças bebendo álcool livremente na rua. O delegado disse que viu em um momento da reportagem, e depois desmentiu. Era uma coisa que os adultos olhavam, mas, na euforia da festa, não viam", conta João.

Será que essa meninada que faz TV em pleno sertão inventa uma linguagem e uma estética próprias, ou apenas copiam os formatos que assistem na TV? Quem pensa que a TV é a única referência para esses jovens criadores de imagens vai se surpreender. Nova Olinda tem um cineclube chique no último: desfilam pela tela os mais diversos curtas brasileiros, graças a uma parceria com a Petrobras. A partir de uma certa idade, também apuram o senso estético da meninada as imagens de mestres como Tarkosvky, Bergman, Antonioni, Pasolini, Hitchcock, em sessões lotadas com até 200 pessoas.

"Os jovens da TV Casa Grande não fazem uma cópia do Jornal Nacional, eles desenvolvem uma técnica e uma linguagem próprias pela riqueza que o contato com essas referências de qualidade proporcionam. Eles começam a produzir com mais liberdade, a brincar com as imagens, e assim eles afinam o conteúdo pela estética", acredita Alemberg Quindins.

"A Fundação não forma fotógrafos, editores ou locutores de rádio. A mídia aqui é uma ferramenta de transformação. Ela amplia a imaginação, a capacidade de expressão, e também a visão sobre a realidade da comunidade", ressalta João Paulo, com a experiência de quem cresceu aprendendo a lançar um novo olhar sobre a cidade onde nasceu.

PASSEIO NO SUBMARINO AMARELO

Todos os dias, às 12h30, Valeska Cordeiro, 13 anos, chega à sede da Rádio Casa Grande FM. É ela quem comanda o programa infantil da rádio, o Submarino Amarelo, onde embarcam cerca de 20 crianças que estão aprendendo a arte de fazer rádio para outras crianças, diariamente, das 13 às 14 horas. "Eu chego, separo as músicas do dia, converso com os meninos da escolinha, e a gente decide qual vai ser o tema do dia. Aí a gente escreve o roteiro. Tem o quadro de histórias, o quadro dos aniversariantes. Às vezes eu mesma falo sobre o tema do dia, às vezes uma das crianças é quem fala". Ela costuma escolher o tema entre aqueles que considera saudável para a criançada de Nova Olinda. "A gente fala porque é bom ir à escola, porque é legal aprender a gostar de ler", explica a desinibida Valeska. "Eu gosto de fazer rádio porque a gente entra em contato com as pessoas que nos ouvem, e também porque as crianças aprendem a pensar e a ouvir músicas legais", garante a jovem locutora.

Música legal é com um dos sete irmãos de Valeska, Tontonho, de 14 anos. Guitarrista e vocalista de uma banda local, Tontonho é louco por música e apresenta diariamente o programa Som da Rua, das 14 às 16 horas. "É um programa de variedades musicais. Eu toco MPB, rock nacional, blues, jazz, reggae. Acho que tenho muita responsabilidade, pois estou ajudando a levar música de qualidade para a nossa comunidade, estilos e artistas que eles geralmente não ouvem", explica Tontonho, que se esbalda na enorme discoteca da rádio, fruto de doações permanentes.

Mêires Moreira, de 21 anos, não arreda pé da Rádio Casa Grande por nada. Produtora e locutora do programa diário Papo Cabeça, ela foi convidada pela UNESCO a fazer parte de um Grupo de Trabalho Jovem sobre AIDS. O convite gerou viagens e reuniões com outros jovens brasileiros em várias capitais." O mais importante de fazer rádio é o fato de procurar conhecimentos e transformá-los em informação para outras pessoas No meu programa, falo um pouco de tudo: água, protagonismo juvenil, DST. Na época das eleições municipais, passei a semana inteira alertando a população para não votar em troca de favor. Eu comecei aos 10 anos, fazendo o programa infantil Planeta Criança, e não parei mais. Eu sempre digo que podem tirar de mim todas as minhas atividades, menos o meu programa de rádio", avisa Mêires, que vem de uma família de 10 irmãos e hoje cursa Pedagogia na Universidade do Crato.

A gerência da Rádio Casa Grande FM está nas mãos de Cícero Ferreira Alexandre, de 22 anos, que também está no projeto desde o tempo em que a rádio funcionava ao vivo, lá pelos idos de 95, com apenas um transmissor e 4 auto-falantes nos finais de semana. Em 1998 ela foi reconhecida pela ANATEL como rádio comunitária, e tem programação diária das 5 da manhã Às 10 da noite. Hoje, a "escolinha" da rádio atende cerca de 70 crianças e jovens, com idades entre 5 e 18 anos. Para Alexandre, a experiência na rádio abre horizontes para as crianças e jovens do projeto. "A meninada chega muito acanhada, mas quando as crianças começam a falar para a comunidade onde vivem, elas mudam completamente. Mudam o jeito de falar, de se comunicar com as pessoas, de se integrar socialmente, mudam até o desempenho na escola", comemora.

O sonho de Alexandre é alçar a rádio ao status de educativa, quando poderá operar com maior alcance e chegar a toda a região do Cariri: Crato, Juazeiro, Assaré, entre outras cidades. "A gente vê muita gente de fora daqui com aquele brilho no olho, sonhando em ter um projeto como a Fundação Casa Grande na sua cidade. Acho que as pessoas percebem como os programas que a gente faz ajudam a preservar a nossa cultura", acredita Alexandre.

Alemberg Quindins, que vislumbrou esse oásis de protagonismo infanto-juvenil em pleno sertão, também celebra os resultados. "Essas crianças vêm de escolas públicas, de famílias humildes. De certa forma, criamos todo um mundo produtivo ainda na infância, incentivando a participação no meio em que elas vivem, com responsabilidade sobre a comunidade. Também criamos um pólo turístico que beneficia também as famílias dessas crianças, por meio de uma cooperativa que oferece hospedagem domiciliar aos turistas. O maior problema de qualquer comunidade é a desagregação, a dificuldade de se reunir e propor alguma coisa em benefício da coletividade. Os meninos do projeto estão aprendendo, desde muito cedo, a se reunir, se organizar e realizar um objetivo comum. E assim a cidadania se constrói", finaliza.

* Cássia Borsero é jornalista e editora do website do MIDIATIVA

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