FANTIN, Monica – UFSC
GT: Educação e Comunicação/n.16
Introdução
Diante da crescente afirmação e negação do direito à infância, os que atuam com educação enfrentam imensos desafios. Tanto em relação à situação política e econômica como em relação aos problemas específicos do campo pedagógico, as dificuldades assumem proporções cada vez maiores com implicações assustadoras exigindo respostas urgentes, nunca fáceis.
Se por um lado o conhecimento teórico sobre a infância avançou, por outro, presenciamos certa incapacidade da escola de lidar de forma adequada com crianças.
Se há evidências sobre o desaparecimento de certas práticas culturais típicas de crianças, há que reconhecer o que é específico da infância em diferentes culturas, seu poder de imaginação, fantasia, criação e considerar a criança em seus direitos, entendendo-a como um ser que produz cultura e nela é produzida, que subverte a ordem das coisas, que transforma o real, que cria possíveis. Esse modo de ver as crianças pode ensinar não só a compreendê-las melhor mas a ver o mundo a partir de seus olhos, do ponto de vista da infância.
As mudanças da sociedade contemporânea estão levando à desagregação da idéia de infância e da educação como formação e experiência cultural, sendo necessário recuperar tais idéias e ações que desvelem seu significado hoje. Nesse sentido, o presente texto apresenta algumas questões de pesquisa que se intercruzam. Qual o papel das produções culturais infantis na constituição do ser criança? Como as produções culturais têm atuado para ensinar o mundo às crianças? Como os espaços de brincar, ler, ver, contemplar, espaços da mídia, cinema, tv, biblioteca, museus, parques, etc. assumem sua responsabilidade social de modo a contribuir com outra perspectiva de infância?
A resposta de tais questões podem revelar que as produções culturais infantis contribuem para a constituição do ser criança hoje e para certa visão de infância. E é isso que o texto objetiva discutir, o papel das produções culturais infantis e sua experiência de formação cultural na educação focalizando o cinema na escola.
Será possível construir na escola uma educação como formação cultural, como experiência formativa, crítica, criadora, de resistência e emancipadora? Transformar a vivência – que se esgota no momento de sua realização, finita – em experiência, pensada, refletida, narrada, compartilhada, infinita? Será possível entender a produção cultural na escola como experiências para além do entretenimento, consumo e lazer? Experiências que passam além do tempo vivido e permitem os rastros como leituras que levam algo do livro, da pintura, do filme para além de seu tempo-presente?
Mas como o professor vai fazer tal mediação se não possui essas experiências culturais e se não interage com as diversas linguagens da cultura e suas produções?
Parte desse conflito refere-se à formação do professor e à influência da pedagogia moderna quando emancipou-se do conteúdo escolar a ser ensinado, o que
“...resultou nas últimas décadas em um negligenciamento extremamente grave da formação dos professores em suas próprias matérias (...). Como o professor não precisa conhecer sua própria matéria, não raro acontece encontrar-se apenas um passo a frente de sua classe em conhecimento” (ARENDT,1997:231)
Não possuindo mais o domínio de sua arte – que no caso da educação para crianças envolve os conteúdos específicos relacionados ao desenvolvimento infantil, à construção de conhecimentos nas diferentes áreas bem como os procedimentos, as atitudes e as linguagens necessárias a este processo de construção -, o professor fica à mercê das circunstâncias, dos acasos, dos ”modismos” e da “tirania” da escolha da maioria das crianças, que muitas vezes vem do repertório das produções culturais. Sem possuir e dominar um referencial, dificilmente articula de forma significativa as linguagens da criança - e aí incluo o lúdico, a arte e as narrativas – e as produções culturais como forma e conteúdo a ser trabalhado. Sem sua matéria prima e sem seus instrumentos teórico-metodológicos de trabalho, dificilmente o professor fará suas escolhas didático-pedagógicas articulando significativamente tais aspectos em seu projeto de trabalho.
Para educar crianças neste contexto, precisamos enfrentar o desafio e trabalhar numa perspectiva de construção da experiência no sentido benjaminiano, na conquista da capacidade de ler e narrar o mundo apropriando-nos das diferentes formas de produção da cultura, expressando, criando, comunicando e transformando. Desafio de construir educação na escola e nos diferentes espaços de produção cultural de um jeito diferente, mostrar na mídia outros modelos de educação e outros modos de ser criança que resistem e também existem.
Entendendo as produções culturais como os brinquedos, livros, revistas, músicas, teatro, cinema, programas de tv e filmes voltados para o público infantil, é fundamental investigar o que as crianças pensam dessas produções culturais e discutir o papel que desempenham na educação das crianças. Neste desafio, faz-se urgente analisar os componentes de tais produções, suas formas, seus conteúdos e suas linguagens a fim de discutirmos sua especificidade na educação. Apesar de estarem voltadas para público infantil, muitas vezes elas adultizam as crianças ou infantilizam ao desconsiderá-las também como produtoras de cultura, para além de consumidoras, pois se a mídia preocupa-se mais com a criança-consumidora e a escola com o a criança-aluno, há que se preocupar com o sujeito criança-criança.
No campo da educação-comunicação, as produções culturais podem contribuir para criar situações importantes de aprendizagens culturais, educativas e estéticas, transformando tais vivências em experiências culturais de formação, sendo necessário pesquisar como elas se articulam na escola, num tempo orquestrado pelo conflito entre a tradição das aprendizagens básicas e essenciais e a contemporaneidade de outras aprendizagens que ainda não são consideradas tão importantes.
Relacionando as produções culturais infantis a uma forma de arte, ainda que algumas delas identificadas com as da indústria cultural, a desarticulação entre arte e conhecimento na educação é notória.
No rastro das grandes transformações que têm marcado a sociedade contemporânea na busca de linguagens mais adequadas às visíveis mudanças operadas em todos os âmbitos e modalidades das práticas sociais e humanas, especificamente na prática educativa permanece um dilema e um paradoxo para a construção significativa do conhecimento: necessidade de operar com informações tecnológicas críticas e criativamente na universalização do ensino de um lado e de outro o acesso a tais bens culturais restrito apenas à parcela da população.
Se a condição de ambigüidade, por um lado, é fértil para a criatividade humana, por outro, pelo seu potencial desequilibrador, pode ser motor de saídas conservadoras, reducionistas e unilaterais.
Em busca de uma possibilidade onde arte e ciência estejam articuladas no tratamento das diferentes áreas de conhecimento - entendimento que se negue a dicotomizar entre o tradicional e o novo, entre prioridades da linguagem escrita e outras linguagens artísticas, lúdicas e narrativas, entre produção cultural como diversão e entretenimento e como educação, propõe-se uma síntese que ao mesmo tempo guarde e transforme a relação conhecimento-arte na ação de ensinar e aprender a partir do olhar da criança sobre as produções culturais infantis e seus descompassos nas prioridades definidas entre tradição e contemporaneidade.
Produções culturais infantis e educação
O trabalho pedagógico numa sociedade cada vez mais visual demanda um trabalho com a leitura e criação de imagens relacionado ao conhecimento a partir da perspectiva do sujeito plural. Questionando o universalismo de alguns códigos hegemônicos, elegeríamos a pluralidade como princípio articulador do conhecimento, conforme enfatiza Barbosa (1998).
Isso implica pensar na formação do sujeito cultural num momento em que a educação escolar já não forma, prepara e qualifica só para o trabalho, devendo incluir a discussão do tempo livre na formação desse sujeito que se pretende criativo, já que a imaginação e o pensamento criador podem configurar-se importantes instrumentos para a transformação da sociedade que exige cada vez mais flexibilidade, socialização e comunicação para inserção dos sujeitos no contexto atual, implicando a necessidade de um trabalho educativo com a diversidade.
Diante da importância que as produções culturais infantis e as atividades lúdicas, narrativas e estéticas assumem na educação de crianças pequenas, por envolver uma forma de pensamento simbólico e intuitivo e articular linguagens que expressem a intensidade do ser criança, além de constituir elementos de uma cultura infantil, é importante identificar como estas dimensões - que têm como base comum o trabalho com o imaginário, expressão e cultura – estão presentes no ensino. Importa saber como as crianças se relacionam com as produções culturais no espaço escolar e o que elas pensam de tais produções. Se elas estão contempladas com estatuto próprio, se são tratadas como conhecimento e/ou patrimônio cultural da humanidade, se são acessórios complementares de outras atividades ou se aparecem apenas em momentos recreativos e de lazer. Enfim, importa saber qual o caráter que as produções culturais infantis assumem no ensino e no tempo-espaço escolar.
Ao procurar as razões para compreender a falta de alimento e continuidade do percurso evolutivo e criador nas produções estéticas das crianças após o ingresso no ensino fundamental, considerando o desenvolvimento infantil e a ampliação dos interesses decorrentes de novas aprendizagens, destaco duas hipóteses que sustentam as medidas educacionais: a primeira diz respeito à prioridade do trabalho com a linguagem escrita e leitura e sua importância na sociedade em que vivemos; a segunda diz respeito à falta de formação do educador em perceber a importância e a articulação entre as produções culturais mais amplas com as diversas formas de linguagens artísticas, lúdicas e narrativas para o trabalho com a leitura e escrita - articulação esta não apenas no sentido da complementação do trabalho mas como produção e ampliação da educação estético-visual, como possibilidade de construção da cultura lúdica infantil e como forma privilegiada para desenvolver a narrativa, a oralidade, a lógica, a imaginação e a criatividade.
Pensar o processo criador é refazer, recriar, transformar... é pensar um processo onde mais importante do que saber as respostas dos problemas é saber formular perguntas, descobrir problemas. E esse processo criador não fica restrito ao campo da arte, à prática estética, pois está presente na nossa vida, no nosso trabalho. Cabe à escola, aos professores mediadores de cultura e aos diferentes espaços de produção cultural, não só possibilitar, desenvolver e promover situações que envolvam a criação. Mas, desafiar, provocar, instigar o pensamento divergente e suas contradições, a sensibilidade, a busca de significado, a construção de novas relações. Pensar o processo criador é alimentar a relação significativa e inquieta com o conhecimento, que é construído na criação, na transformação e na recriação de hipóteses em constante movimento, como pulsão de vida.
Dizer que tal processo não é exclusivo do campo da arte, implica pensar o processo criador em outras áreas, considerando a existência de fatores como tempo e lugar. Considerando a infância como um período fértil para alicerçar tal processo, algumas atividades podem ser consideradas privilegiadas para favorecer a construção de conhecimentos articuladas com o percurso criador do sujeito, ampliando suas noções prévias.
Considerando que arte é um trabalho do pensamento, entender arte como conhecimento implica refletir sobre alguns aspectos dos processos de criação, como as representações da relação homem-mundo. Nesse sentido, é licito perguntar até que ponto podemos considerar as produções culturais infantis como uma forma de arte, pois Chauí (1994:329) destaca que na sociedade pós-moderna, as artes foram submetidas às regras do mercado e à ideologia da indústria cultural, baseada na idéia e na prática do consumo de produtos culturais como mercadorias fabricadas em série.
No entanto, se as crianças se relacionam com tais produções e alimentam sua educação estética, se é próprio da criança desenhar, pintar, dançar, e tantas outras atividades, a forma como elas vem se relacionando com as produções culturais e a forma com que esse conhecimento vem acontecendo nas escolas acaba por favorecer o abandono de certas atividades estéticas e das múltiplas linguagens que a infância utiliza.
Nesta perspectiva, entendendo o cinema na interface da produção cultural e da arte, possibilitar o trabalho com esta linguagem a partir de seu estatuto próprio pode ser ampliado e redimensionado quando se sabe da importância em propiciar às crianças experiências estéticas.
Martins (1998) ressalta que muito do que sabemos hoje sobre pensamento e sentimento de pessoas, povos, épocas e culturas são conhecimentos que obtivemos por meio de sua arte – música, poesia, pintura, dança, teatro, cinema -, então é necessário entender tais linguagens. Afinal, para apropriar-se de uma linguagem é necessário entender, interpretar e atribuir sentido a ela, a fim de aprender a operar com seus códigos. E da mesma maneira que na escola existe espaço destinado à alfabetização na linguagem das palavras e dos textos orais e escritos, é preciso haver espaço para a alfabetização estética nas linguagens da arte como forma de compreensão do mundo, das culturas e de si próprio.
A partir de uma visão crítica e compreensiva dos caminhos da arte contemporânea, com suas trajetórias e transformações, a arte hoje para Canclini (1984), abrange as artes tradicionais conhecidas como tais e, também as atividades não consagradas pelas belas-artes, como as expressões visuais e musicais nas manifestações políticas ou aspectos da vida cotidiana. A arte, então, deixa de ser concebida apenas como um campo diferenciado da atividades social e passa a ser, também, um modo de praticar a cultura. Ela abrange as atividades ou aspectos de atividades de uma cultura em que se trabalha o sensível e o imaginário, objetivando alcançar o prazer e desenvolver a identidade simbólica de um povo ou uma classe social, em função de uma práxis transformadora.
E dentro dessa cultura que trabalha o conhecimento científico, sensível, simbólico e imaginário, é importante que a escola contemple as formas e conteúdos das produções culturais infantis trazendo o cinema para dentro da escola.
Industria cultural e lazer nos contextos educativos
Sabemos que a cultura transmitida na escola é articulada com significados prévios e talvez ocultos que os alunos trazem e que formam a sua bagagem de crenças, significados, valores, atitudes e comportamentos adquiridos fora dela, pois são mediados por fatores como classe, etnia, geografia, etc. sabemos que hoje as mídias apresentam cada vez mais cedo o mundo às crianças e elas trazem os repertórios do cinema, da televisão, dos quadrinhos, da literatura, da imprensa nas falas cotidianas - muitas vezes cheias de estereótipos- que compõe o currículo extra-escolar. Na medida que a educação escolarizada não intervém na crítica e depuração desse conhecimento extra-escolar, não ativa um âmbito de socialização decisivo para os indivíduos - que seria o trabalho numa perspectiva multicultural no ensino, coerente com valores de uma sociedade democrática que respeita o pluralismo.
Contextualizar tais elementos faz parte de uma educação para as mídias, sendo inevitável discutir a indústria cultural e suas contradições, revelando indignação diante de algumas questões e buscando expressão de positividade frente as novas formas de sensibilidade que hoje as mídias nos trazem.
Adorno (1985) considera a indústria cultural como a indústria da diversão em que a lógica da mercadoria invade a arte através da indústria cultural. Nessa perspectiva, a cultura é vista como mercadoria de massa que visa preencher o tempo do não trabalho com a mesma lógica da razão experimental. Para ele, divertir-se é estar de acordo e conformar-se, uma vez que como caraterística da produção industrial, seu objetivo é o mesmo, a alienação.
Benjamin (1994), por sua vez, considera que o cinema oferece uma nova forma de arte adequada à construção de uma outra experiência de sensibilidade. Ele defende uma dimensão libertadora da arte sem aura que é o cinema, revelando o potencial político progressista que essa nova sensibilidade pode ter, tanto na sua forma de expressão como no conteúdo da existência do homem moderno.
Para o autor, o cinema é forma de arte destinada ao homem hoje, implicando modificações profundas no aparelho receptivo, cujas transformações sociais imperceptíveis acarretariam mudanças na estrutura da recepção que seriam utilizadas pelas novas formas de arte.
Benjamin diz que o cinema é uma forma de arte marcada pela hegemonia da massa e revela o caráter político e transformador que o cinema pode ter ao contestar as críticas que o identificam como arte manipuladora destinada apenas a induzir as massas. Se as massas procuram a diversão, tal arte exige concentração e quando traduz a oposição entre diversão e concentração, ele diz que aquele que se concentra, diante de uma obra de arte, mergulha dentro dela, penetrando-a como um pintor que se perde dentro da paisagem que pintou. Para ele, ocorre ao contrário, pois na diversão, é a obra de arte que penetra na massa.
“A descrição cinematográfica é para o homem moderno infinitamente mais significativa que a pictórica, porque ela lhe oferece o que temos de exigir da arte: um aspecto da realidade livre de qualquer manipulação pelos aparelhos, precisamente graças ao procedimento de penetrar, com os aparelhos, no âmago da realidade”(1994:187)
Mesmo admitindo o caráter autoritário do cinema, Benjamin dialetiza sua compreensão da arte de massas, buscando revelar seu potencial progressista e transformador e ainda que seu texto seja de 1936, tais questões apontam uma compreensão bastante sofisticada que podemos atualizar para os efeitos da mídia sobre o homem neste início de século.
Na relação cultura-lazer, Teixeira Coelho, afirma que a cultura é muito menos “de massa” e muito mais “de lazer, de lazer de massa”, argumentando que
“a sociedade de massa não quer cultura, mas lazer, cujos artigos são consumidos do mesmo modo como essa sociedade consome qualquer outra coisa, batatas fritas de saquinho plástico ou desodorante íntimo” (In Rocco, 1991:125)
Mas será que tal raciocínio é válido quando se trata de produção cultural para crianças?
Se a tecnologia mudou os modos de percepção da realidade, esta evolui com a técnica implicando novas maneiras de ver e perceber a obra de arte: contemplando e usando. Assim, a cultura e a comunicação na escola podem ser espaço de fruição estética e de uso de tais produções culturais inclusive como possibilidade de reavaliar os padrões estéticos nos contextos de uso e fruição dominante. Uma vez que a ausência de contatos diversificados no campo do lazer e da cultura é empobrecedora, pois o prazer através de um processo simplificado de percepção é o contraposto de uma fruição decorrente de uma emoção estética como dinâmica multifacetada, a escola precisa situar tais universos de representações.
No entanto, por sua especificidade, como fica a entrada do cinema na escola, uma vez que a ela é regida por outros códigos, tempos e ritmos com objetivos educacionais que nem sempre combinam com o caráter divertido e prazeroso da dimensão lazer? Evidente que assistir filmes no cinema ou em casa não é igual a assistir na escola. As mediações serão outras, até mesmo porque não cabe à escola repetir experiências que a crianças vivenciam fora dela. E essa é uma questão que tem que ser pensada quando aproximamos os universos das mídias e da escola.
Nessa perspectiva, mais importante que saber o quê e como as crianças se apropriam das mídias - seja como ferramentas ou como formas de expressão -, é preciso saber como elas interpretam e re-elaboram tais informações em suas formas e conteúdos.
Cinema e criança na escola
Considerando que o cinema não é só a arte contemporânea do homem mas a arte criada pelo homem contemporâneo, a única realmente moderna, Merten (1990) diz que o cinema é um brinquedo maravilhoso, capaz de dar sentido à fantasia não apenas de quem faz, mas de quem vê filmes.
Se o cinema permite a sensação de sonhar acordado, o autor alerta que tal brinquedo também pode ser perigoso, pois o cinema organiza imagens no inconsciente e impõe conceitos. Revelando seu caráter ambíguo, para Merten o cinema deixa de ser um inocente e maravilhoso brinquedo para se transformar num instrumento de dominação e massificação cultural, podendo influenciar pessoas quando coloca o espectador numa posição passiva, e isso implica pensar num processo de aprendizado e educação, pois a recepção também é ativa.
Embora a interpretação do cinema como pura alienação seja insuficiente, a massificação que atinge adultos potencializa o efeito nas crianças. Os filmes trazem mensagens, noções, conceitos, concepções e valores que vão desde a visão do bem contra o mal, conformismos, submissões, relações de poder, resistências até padrões de comportamentos, arquétipos e estereótipos que são criados, consumidos e reproduzidos por quem assiste. E isso acontece independente de sua qualidade técnica e estética, suas seqüências de plano, sua fotografia e seus efeitos especiais que estão a serviço da imaginação.
Por outro lado, Barbero enfatiza que
“o massivo, nesta sociedade, não é um mecanismo isolável, ou um aspecto, mas uma nova forma de sociabilidade. São de massa o sistema educativo, as formas de representação e participação política, a organização das práticas religiosas, os modelos de consumo e os usos do espaço”(Barbero,2001:322).
Para o autor, o massivo não significa, automaticamente, alienação e manipulação, pois implica novas condições de existência e luta, “um novo modo de funcionamento da hegemonia”.
Assim, o perigo da manipulação existe quando o espectador não faz a síntese crítica, quando ele não pensa sobre o que assistiu. Nesse sentido, é vital instrumentalizar educadores e estudantes para ter essa possibilidade de crítica sem tirar o poder encantatório do cinema e sem destruir o imaginário que com ele construímos.
Diante da integração das produções culturais na escola, no caso do cinema, há que se considerar os devidos cuidados na sua apropriação e transposição didática. Os usos da linguagem audiovisual e a sua relação com imaginário, os diferentes códigos icônicos e produção de leituras, a possível determinação de um signo sobre outro, a destituição de seu uso social para seu uso escolarizado e tantos outros aspectos que são necessários discutir a partir de uma leitura histórica das relações entre cultura e escola para manter a instituição e seus agentes como formadores. A escola não é espaço de lazer, mas como instância mediadora, estará aprendendo e ensinando sobre questões implícitas ao que é visto nas mídias e ao fazer isto, estará sendo mais bem informada sobre aspectos que formam o gosto, sobre mitos e estereótipos, sobre inculcações de valores subliminares e tantas outras informações críticas que podem qualificar e apurar seu olhar e quem sabe até potencializar a fruição de crianças e educadores.
A esse respeito, vale perguntar, como tais artefatos são apropriados pelo professor na escola e no currículo, pois se acreditarmos que o currículo envolve todas as experiências culturais que a escola propicia as seus alunos, ele não é neutro, é escolha e exercício de poder.
E como o professor não consegue competir com o mundo dos espetáculos da mídia, ele traz esse mundo para dentro da sala de aula. Ocorre que, na maioria das vezes, o filme no âmbito da escola é usado como ilustração e complemento, e uma vez que a escola tem sua estrutura de trabalho centrada no texto escrito, o cinema não é visto como uma linguagem com determinados conteúdos e nem em sua especificidade.
Utilizar filmes como pretextos para projetos pedagógicos ou como suporte do trabalho escolar, pode ser uma das alternativas de aproximação - desde que se tenha a preocupação em não empobrecer nem limitar o cinema como linguagem e possibilidades culturais -, e pode ser um começo. Sendo um artefato cultural que as crianças devem se relacionar, em relação ao conteúdo imaginário, o cinema pode ser uma janela para exercitar a capacidade humana, possibilitando uma relação com a fantasia vivida simbolicamente através de emoções compartilhadas com outras crianças que também estão assistindo o filme e isso é uma experiência que a escola pode assegurar.
Prestar mais atenção nas relações das crianças com os filmes, nos dá a possibilidade de entender seus olhares e suas reações frente aos filmes: quando elas acabam de assistir e querem ser seus personagens; quando ficam dias e dias brincando do que viram; quando falam, conversam e discutem sobre o filme; quando cuidam, abraçam e beijam a fita de vídeo. Enfim, é fascinante ter a possibilidade de compartilhar tais reações, pois cinema é emoção e o desafio é entender tais emoções com novas informações, mesmo sabendo de seu uso aberto e incerto e de não saber o uso que dele vai ser feito.
No entanto, se hoje a mídia é a grande mediadora substituindo outras interações coletivas, seus efeitos não são neutros nem onipotentes e implicam a necessidade de mediações culturais, pois o significado final depende dos usos que a ela atribuímos.
Belloni enfatiza que os objetivos da educação para as mídias dizem respeito à formação do usuário ativo, crítico e criativo de todas as tecnologias de informação. Argumenta que a idéia de educação para as mídias é condição de
“educação para a cidadania, sendo um instrumento fundamental para a democratização de oportunidades educacionais e do acesso ao saber e, portanto, de redução das desigualdades sociais” (Belloni,2001:12).
Situando as tecnologias da informação e da comunicação no contexto da mídia-educação, a autora enfatiza duas dimensões indissociáveis: ferramenta pedagógicas e objetos de estudo complexo e multifacetado. Assim, a educação para as mídias não se reduz aos meios e seus aspectos instrumentais, pois não são ferramentas neutras e sim meios que produzem significados. E isso deve estar claro no campo da educação-comunicação (1) e de suas mediações escolares.
Girardello (s/d) afirma que é preciso capacitar crianças e professores para a apreciação e recepção ativa, pois se as crianças não têm uma mediação adulta sistemática que as auxilie na construção de uma atitude mais crítica em relação ao que assistem, a precariedade da reflexão sobre linguagem impede que a compreensão dessas crianças seja mais rica.
Assim, educar para as mídias implica a adoção de uma postura crítica e de capacidades expressivas para avaliar ética e estéticamente o que é oferecido pelas mídias.
Educação do olhar de crianças e professores
Sabemos que hoje muitos professores confundem-se com os alunos ao compartilhar com eles a mesma cultura disseminada mundialmente através da cultura de massas. Possuem os mesmos gostos e preferências, falam a mesma linguagem de jargões por pensar que assim se aproximam do grupo de alunos, assistem aos mesmos programas de tv e aos mesmos poucos filmes, lêem pouco ou quase nada fora daquilo que o contexto escolar solicita, muito raramente vão à exposições, teatros e museus e possuem um restrito repertório musical. Assim, as referências, diferenciadas das usuais, que poderiam e deveriam ser oferecidas pelo educador deixam de existir.
Isso revela um pouco do que Benjamin fala quando diz que todo documento de cultura também é um documento de barbárie, uma vez que a banalização dos valores, a disseminação de tabus e preconceitos, a opressão e desumanização do homem atinge também a formação profissional do educador. Neste sentido, ao não ter essa formação cultural, a escola se caracteriza como o contrário daquilo que a formação cultural deveria assegurar na escola.
Para enfrentar tal quadro, será necessário um trabalho da escola e do conjunto de seus educadores desconstruindo estereótipos que comprometem o cotidiano com o compromisso de valorizar e ressignifcar a cultura a fim de reconstruir o espaço escolar como espaço de formação cultural.
Para isso, o trabalho com a dimensão pedagógica da crítica das produções culturais tem uma função importante. O papel da crítica de cinema, além de prolongar o impacto da obra, pode fornecer meios para o espectador ter uma leitura mais rica do que ele vai ver para fruir e aproveitar melhor o filme. Possibilita referências para ultrapassar a percepção ingênua e ampliar o repertório do espectador e pode desenvolver e aguçar algumas sensibilidades para enriquecer a capacidade do olhar e da percepção.
O cinema é um organismo altamente sensível com confluência de várias áreas. Quanto mais o professor conhecer a respeito do filme e do cinema como um todo, mais capacitado estará para chamar atenção de determinados aspectos que enriquecerão a fruição: a música, o estilo, os elementos da linguagem cinematográfica, a história do cinema e outras informações para avaliar o peso da propaganda e do marketing e a submissão à grande indústria cinematográfica do cinema de mercado como ingredientes necessários para formar e educar um público crítico e consumidor.
A escolha e seleção de filmes é fundamental. Filmes que desafiam, inspiram, provocam e colocam coisas que não se conhecia. Filmes como trabalhos que podem ser lidos, assistidos e interpretados com competência, que são muito ricos para serem aprendido de uma vez só e que não se esgotam na obra.
Se nos tempos da nossa infância os estúdios produziam considerável número de faroestes, comédias e aventuras que nem sempre se destinavam às crianças, mas que eram assistidas nas tardes de domingo como programa obrigatório para a criançada, hoje, apesar das produções voltadas para o público infantil terem aumentado consideravelmente, presenciamos certa perda deste hábito cultural.
Se poucas crianças saem de casa para ir ao cinema e se o público de cinema se elitizou, como a escola pode ajudar a reconquistar? O barateamento do ingresso subsidiado para estudantes, trabalhadores e professores é uma idéia que deve vir acompanhada por um projeto de formação de público, objetivando ampliar o repertório cinematográfico para que as crianças entrem em contato com diferentes produções e encontrem sua identidade na diversidade cultural, com a possibilidade de trazer a cultura de diferentes lugares do mundo.
Se as crianças estão destinados ao que o mercado impõe - que é o filme comercial -, diversificar o que está sendo apresentado ao universo infantil é abrir uma oferta de programação diversa também na escola. Além de criar o hábito de ir ao cinema e sensibilizar esteticamente com conhecimentos que capacitem as crianças acessarem outros repertórios e referenciais, isso permitiria desviar o eixo da produção dos grandes centros da cidade para chegar às escolas e periferias deste Brasil. Aumentando o acervo e o repertório cultural, a diversidade não se daria pela exclusão e sim pela adequação, pois em se tratando de educação, não se trata apenas de proibir, mas de ver, assistir, refletir, elaborar a crítica e quem sabe produzir.
Sonhar acordados: crianças espectadoras, críticas e produtoras
Além de um programa intencional de formação e educação de público para as mídias (2), podemos pensar numa produção cinematográfica feita pelas próprias crianças, a exemplo de experiências do gênero realizadas em outros países, conforme aponta Carlson (2002).
Se a escola abrir espaço para as produções culturais, as crianças poderão ultrapassar fronteiras usufruindo do cinema com suas linguagens e seus códigos. Com uma idéia na cabeça, uma máquina fotográfica e uma câmara na mão, realizando seus desenhos animados, aprendendo a manipular um projetor, brincando com pedaços de filmes, desenvolvendo técnicas de animação, registrando com câmara fixa seus desenhos, as crianças estarão produzindo um pouco de suas experiências estéticas e exercendo seu direito à cultura.
Ao abrir novas possibilidades no sentido das produções culturais, o professor estará alargando os limites dos trabalhos com papel, cartolina e massa de modelar para outras possibilidades de linguagem, educação e expressão a respeito de como as crianças interpretam o que aprendem e do que elas pensam, sentem e dizem sobre o mundo e sobre si próprias.
Nessa perspectiva, ao trazer tais questões da mídia para a escola, é preciso ter o cuidado de não cair num relativismo total, nem cair na premissa liberal de tolerar tudo porque “gosto não se discute”. Discute sim, pois num processo de formação, tem um conjunto de valores que é preciso discutir. Afinal, se lugar de cinema é na escola, “gosto se discute sim” e é preciso deslocar o olhar para mostrar que têm coisas atrás do que não se vê. Abrir fendas no olhar hegemônico que carregamos e que é fruto de uma produção histórica, inclusive como forma de compreender essa nova cultura e suas linguagens utilizadas para pensar as produções culturais como espaço de intervenção escolar através das linguagens e das histórias que o cinema conta como possibilidade de construir outras histórias na escola.
Se enfatizamos que as produções culturais infantis desempenham um papel fundamental na escola, tanto na escolha e ampliação dos repertórios culturais quanto na garantia ou não do direito à infância, as produções podem cercear tal direito quando adultizam as crianças com suas programações e preocupações mais voltadas para a criança-consumidora e quando a indústria cultural não compatibiliza o lucro com o respeito à infância. Mas as produções culturais infantis também podem assegurar os direitos das crianças quando garantem o acesso à cultura e propiciam condições lúdicas e reais para elas viverem uma infância feliz e saudável.
Assim, tão importante quanto dar mais recursos aos professores e às escolas, é reforçar o estudo das artes, da literatura, do cinema, da poesia não como objetos apenas formais e científicos, mas como práticas de vida, como processos criadores, como linguagens e passaportes necessários para a inserção social. As linguagens da arte, da literatura do lúdico e das mídias na escola podem e devem estar articuladas à produção de conhecimento como processo criador, buscando a poética do cotidiano e a beleza nas pequenas coisas: na fala, no pensamento, no gesto, no olhar, no movimento, na arte de ensinar e aprender, pois
“o pensamento infantil caracteriza-se por um sincretismo que se exerce por analogias e alegorias, como também caracteriza-se por um grande poder de jogo e imaginação que lhe confere um cunho poético. Devido a essas potencialidades de seu pensamento, as crianças são muito contemporâneas, isto é, atualizadas, em suas concepções sobre o mundo: enxergam os sentidos nas frestas, fissuras, nichos onde conseguem escapar da lógica habitual” (DEHEINZELIN,1995:11).
Para Benjamin, o mito e a alegoria completam a dialética, possibilitando uma modalidade de conhecimento que não exclui a sensibilidade e o raciocínio analítico, que assim não são vistos como elementos incompatíveis. E se, a exemplo do artista, as crianças abordam tudo de maneira inédita e raciocinam por constelações de imagens, por alegorias, elas são capazes de conhecer em um sentido benjaminiano - conhecer sentindo e sentir conhecendo -, sendo seres privilegiados para o exercício do pensamento contemporâneo, como diz Deheinzelin (1996).
Infelizmente a escola enxerga a infância com um olhar muito mais cartesiano do que benjaminiano, sendo chegada a hora de transformarmos tal situação, reinstalando a importância do pensamento poético que, segundo ela, é próprio das crianças e que precisa ser resgatado se quisermos construir uma prática estética, sensível e criadora, relacionando as produções culturais infantis, a arte, a narrativa e o lúdico - a partir de uma síntese que permita sua articulação significativa com o conhecimento como processo criador. Articulação que considere o que a crianças pensam de tais produções criticamente para contribuir com a construção de um sujeito plural no sentido do sujeito que cria, que é produto e que produz cultura, que imagina, que sonha, que tem esperanças, que transforma, que busca o belo, que tem ação pensante, reflexiva, simbólica e laboriosa no mundo através das produções culturais e do cinema na escola, para inventar e praticar uma educação que seja, ela também, uma espécie de poesia.
NOTAS
1 Ver SOARES, I. “Comunicação/Educação: a emergência de um novo campo e o perfil de seus profissionais” em Contato, Brasília, ano 1 Jan/mar.1999. e BELLONI, M.L. “Mídia-educação ou comunicação educacional? Campo novo de teoria e de prática” em A formação na sociedade do espetáculo. S.P., Loyola, 2002.
2 Ver “Programa Formação do Telespectador em Belloni 2001:67-89
Bibliografia
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23 de maio de 2006
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