27 de maio de 2006

Televisão e Identidade Cultural: A "Renascença Africana"

Firdoze Bulbulia

"As crianças devem ouvir, ver e expressar sua cultura, sua linguagem e as experiências que vivem, através daqueles meios eletrônicos que afirmam seu senso de "eu", de comunidade e de lugar."
Carta Africana sobre Crianças e Televisão - Gana, 1997.

Introdução
Em um continente que pode se orgulhar de ser o berço da civilização - onde foram descobertos os mais antigos fósseis humanos, e onde estão algumas das maravilhas do mundo, como a Pirâmide e as Esfinges , onde surgiu a escrita, com os hieróglifos, e onde se travaram as mais longas batalhas contra o colonialismo - celebram-se hoje as mais diversas culturas, falam-se muitas línguas diferentes e encontram-se povos muito diversos.

É um continente onde as raízes da civilização são profundas, e onde a cultura se entrelaça com os rituais e práticas de todos os dias. Onde montanhas, cachoeiras, desertos e oásis se se estendem pelo território. Nesse continente rico e cheio de maravilhas, a cultura do povo se move em terreno sagrado. É nas danças e canções, na práticas rituais e no culto aos ancestrais, na religião islâmica e na devoção cristã, que as culturas desses povos têm sido celebradas.

Mas quanto disso tudo isso aparece em nossas telas? Conseguimos ver nelas nossa rica herança? Escutamos nossas linguagens, cantamos nossas canções e celebramos nossas culturas?

Não - em vez disso, a mídia ocidental nos vê e nos retrata como uma grande massa - sem fronteiras, sem linguagens diferentes, sem culturas, povos ou religiões diversas. Somos às vezes vistos como "um lugar exótico", ou "o continente negro", e muitos ocidentais ainda querem saber onde é que leões e elefantes perambulam pelas ruas, e em que "cabanas" dormimos, que tipo de roupas vestimos.
A televisão ocidental produz programas que refletem uma certa realidade, uma realidade que não é sinônimo da África. Os ocidentais esquecem o ouro e o marfim que roubaram, os artefatos - esculturas em pedra, máscaras de bronze, pinturas rupestres e a história - perdidos para as potências poderes coloniais através de interpretações e representações enganosas.

Aproxima-se o novo milênio e a opressão colonial continua - agora de forma mais sofisticada. Ela se dá agora através dos meios eletrônicos, com novos aliados. Aliados que constróem representações deformadas de nosso povo e de nosso continente, para então exibi-las a um público ignorante, faminto de sensacionalismo. Imagens de morte, de guerra, destruição, medo, estupro, motins. Imagens que materializam um continente "exótico", perdido...

A frase citada no início, extraída da Carta Africana sobre Crianças e Televisão, é, então, pertinente. Mas quantos produtores de programas para crianças se deram conta de que a África adotou tal Carta? É uma Carta que deveria garantir os direitos das crianças e sustentar sua identidade cultural.Como é que as crianças podem expressar sua cultura através dos meios eletrônicos quando na maioria dos casos elas nem mesmo têm a oportunidade de expressar suas culturas dentro do próprio ambiente em que vivem?

As crianças da África do Sul, por exemplo, são classificadas em quatro grupos raciais diferentes: Indianas, Africanas, Brancas e "Coloured" (uma mistura das raças branca e negra). O fato de que na comunidade indiana encontramos pelo menos três diferentes identidades "culturais e religiosas" parece não fazer a mínima diferença. O fato de que as culturas muçulmana e hindu são tão diferentes a ponto de existirem a Índia e o Paquistão, também não conseguiu fazer o velho regime sul-africano perceber essas diferenças tão fundamentais.

Assim, as crianças indianas, como eu, foram a escolas indianas, viveram em bairros indianos e brincavam com crianças indianas. O mesmo se aplicava a todos os outros grupos "raciais". Mas o fato de que eu era muçulmana, e portanto tinha uma cultura diferente de meus amigos hindus ou tamil, significava que nós "tolerávamos" uns aos outros, mas em geral expressávamos nossa cultura dentro de nosso próprio ambiente.
Eu ia à escola maderssa - islâmica - depois do horário regular de aulas, e meus amigos hindus ou tamil iam à escola gugerati depois das aulas. Durante o horário da "escola normal", no entanto, usávamos o inglês como língua franca, e não havia espaço para expressão cultural.

As crianças africanas têm uma situação ainda mais complexa, porque também foram obrigadas a adotar o inglês e depois o afrikaans como meio de instrução nas escolas, e prevalecia a ausência de arte e cultura no currículo escolar.

Em 1976 teve lugar a famosa Revolta de Soweto, e isto porque as crianças africanas começaram a se rebelar contra a insistência no uso do idioma afrikaans como meio de instrução nas escolas. Os povos africanos na África do Sul dividem-se em cerca de 20 tribos culturais tradicionais. Assim, enquanto eu tinha que lidar com duas outras culturas indianas, as crianças africanas tinham que lidar com pelo menos 20 outras identidades africanas, nenhuma das quais recebia qualquer atenção no antigo regime.
As culturas africanas, assim como as indianas, eram totalmente suprimidas.

O panorama sul-africano: A Corporação Sul-Africana de TelevisãoA Corporação Sul-Africana de Televisão (South African Broadcasting Corporation - SABC) só começou a transmitir em 1975, porque o regime não queria que os sul-africanos fossem expostos ao mundo. Assim, ao mesmo tempo que suprimia nossas próprias culturas, o regime conseguia evitar nossa exposição às culturas globais.

A SABC começou a transmitir em duas línguas oficiais: o inglês e o africaans. O tempo era dividido igualmente, com uma metade do horário nobre em inglês e a outra metade em afrikaans. O mesmo acontecia durante a semana. Assim, se uma segunda-feira começava com programas em inglês, a terça começaria com programas em afrikaans. As notícias principais, apresentadas às 20 horas, também se alternavam entre as duas linguagens.

Muito mais tarde, porém, surgiu um canal especial, em linguagem "africana", gerando tremendos problemas, sendo a linguagem o menor deles!

Nos anos mais recentes, a SABC tem se transformado, mas essa transformação, como qualquer nascimento, é difícil e trabalhosa. As imagens vistas na TV ainda não refletem o país.

Lembrem que a África do Sul foi um país que preferiu a dominação e a cultura brancas, e é lenta a sua transformação em uma sociedade mais igualitária.
As imagens da África do Sul rural ainda ficam escondidas, e as crianças dessas comunidades ainda não têm acesso à televisão.

E mesmo que essas crianças tivessem acesso ao meio, se desapontariam ao ver que sua própria imagem e identidade não aparecem nele. A CBF desafiou a SABC quanto a questões de identidade, cultura e linguagem, e agora, lentamente, começam a aparecer alguns resultados.

Às vezes emerge na tela a imagem calma de um vilarejo rural, às vezes ouve-se os estalidos de uma linguagem nativa (como a linguagem san, falada por um povo quase extinto), e quando isso acontece nos regozijamos...

O panorama africano

A linguagem e a cultura são intrínsecas. É um fato bem conhecido que a África francófona suprimiu a cultura e as línguas africanas; desde que você pudesse ser um "bom francês", ou seja, que se vestisse e falasse como os senhores franceses, não importava de que cor você fosse. Assim, os africanos que foram capazes de assimilar a cultura tornaram-se franceses honorários.
Já a África anglófona não esperava que os africanos se tornassem ingleses honorários.

Esperava apenas que se mantivessem à distância, e que praticassem seus "exotismos pagãos" bem longe!
Assim, os africanos tinham medo de expor sua cultura - mantinham-na escondida, fingindo que ela não existia. Eles aprenderam a ética e a linguagem de seus senhores coloniais, mas, secreta e silenciosamente continuaram a aprender e a compartilhar sua cultura.

Desse modo, os africanos acabaram perdendo muitas de suas práticas culturais, até que muitos africanistas passassem a instilar uma teoria voltada à "consciência negra", numa tentativa de tornar os africanos orgulhosos de quem eles eram. O Pan-africanismo, como teoria, tornou-se um ideal em direção ao qual se movem os africanos.

Mais tarde, algumas noções mais liberais e pragmáticas sobre a cultura africana começaram a ser adotadas; na África do Sul, por exemplo, a visão não-racialista tornou-se norma.

A maior parte dos africanos começou a adotar os pressupostos da "Carta da Liberdade", que enfatizavam que "a África do Sul pertence a todos os que nela vivem - sejam brancos ou negros."

Diante dessa visão mais pragmática da cultura, seria de se esperar que todas as culturas passassem a ter oportunidades iguais de exposição. No entanto, na África do Sul as culturas dominantes eram brancas, tanto inglesas quanto afrikaans. A história relata a luta dos africâners por sua sobrevivência cultural, mas conta também a triste verdade da dominação cultural africâner na África do Sul. ^


Daqui para a Frente...

Os programas de televisão feitos para a África e sobre a África deveriam considerar a herança cultural dos povos africanos, Um desses valores é "ubuntu" um conceito bem africano, mas que pode ser traduzido para outras culturas, significando basicamente "eu vivo através de você".

As culturas ocidentais e européias não abraçam esse pressuposto básico de "tomar conta de nosso irmão" - o cuidado altruísta de outra pessoa, sem qualquer expectativa de retribuição. Os programas de televisão deveriam valorizar a cultura dos povos africanos, sem desmerecer seus valores culturais por não compreendê-los ou ignorá-los.

A supressão da cultura africana, assim como a distorção dela decorrente deve ser questionada com veemência. É necessário nutrir as culturas africanas e as de outras minorias. O espírito de uma Renascença Africana, tão bem descrito pelo presidente da África do Sul, Thabo Mbeki, deve ser reconhecido como um instrumento progressista capaz de levar a cultura africana para o novo milênio, de modo a que ela não seja "saneada", mas, ao contrário, respeitada e compreendida.

"O começo de nosso renascimento enquanto continente precisa ser a redescoberta de nossa própria alma, captada e tornada sempre disponível nas grandes obras de criatividade representadas pelas pirâmides e esfinges do Egito, as construções de pedra de Axum, as ruínas de Cartago e Zimbabwe, as pinturas rupestres dos San, os bronzes do Benim, as máscaras africanas, os alto-relevos dos Makonde e as esculturas em pedra dos Shona." ^

Conclusão

Produtores e diretores de televisão - todos têm a responsabilidade de assegurar cobertura igualitária e exibição de todas as culturas de seu ambiente. Cabe a nós, ativistas e defensores dos direitos das crianças, produtores e diretores de televisão, e também ao público, assegurar que a identidade cultural de todos os grupos receba igual destaque e que cada um de nós compartilhe e aprenda os valores positivos de todas essas diferentes culturas.

A BBC, por exemplo, mostra programas britânicos que representam seu contexto. Sua linguagem, imagem e identidade cultural são britânicas. Os americanos fazem a mesma coisa em seus programas. A Austrália também tem conseguido encontrar sua própria identidade.

Mas nós, no continente africano, ainda lutamos para dar destaque a nossa identidade, e em muitos casos ainda somos afetados por uma identidade colonial ou ocidental.
Enquanto produtores africanos, precisamos reafirmar nossa identidade cultural: temos uma cultura de ubuntu que perpassa todos os aspectos da vida e que oferece às crianças um bom sistema de valores.

Estamos, hoje na África do Sul, entendendo a "cultura do aprendizado" como uma forma de lidar com os desequilíbrios, especialmente no caso dos jovens que colocam "a libertação acima da educação".

A identidade cultural é a base daquilo que somos como povo, do lugar em que nos inserimos e daquilo que defendemos. Ela inclui nossas linguagens, nossos movimentos, nossas tradições, nossas canções, nosso ser. Ela conta aos outros sobre nós, nos reafirma e nutre. Assim, é importante que programas africanos mostrem histórias africanas, com personagens-modelos africanos.

Basta olharmos para os Estados Unidos, para Hollywood, para vermos exemplos primorosos de nossa música e arte. Os artistas afro-americanos tem suas raízes na África, e temos que começar a expor essa identidade cultural também para os africanos.

O ocidente sempre teve sucesso em adotar o que fosse bom, fazendo-o seu e esquecendo sua origem. Precisamos fazer com que os africanos lembrem de seus pontos fortes, de suas habilidades, de sua rica herança e de suas culturas. Precisamos enxergar a África como o continente dinâmico e diverso que ela é, e não como a versão da CNN e da BBC a que somos continuamente expostos.

Nossas crianças precisam ter orgulho de quem elas são, elas têm que se identificar com suas próprias culturas, linguagens e tradições - e isso se aplica a todas as crianças das diferentes culturas. É nossa responsabilidade garantir que a televisão se torne a útil ferramenta que ela pode ser - e não o instrumento de destruição em que está se transformando.

Para concluir, vou citar novamente o presidente Thabo Mbeki, a partir do discurso feito por ele na ocasião em que foi promulgada a Constituição da África do Sul, em maio de 1996. O discurso chamou-se "Sou Africano". "Sou Africano. Devo meu ser aos montes e vales, às montanhas e clareiras, aos rios e desertos, às árvores, às flores, aos mares e às inconstantes estações que delineiam a face de nossa terra natal. Sou Africano. Nasci dos povos do continente da África..."

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