20 de agosto de 2006

RESGATE DA MEMÓRIA

LITERATURA INFANTIL E JUVENIL BRASILEIRA
OS CAMINHOS DA PRODUÇÃO
E O RESGATE DA MEMÓRIA

Rosa Maria Cuba Riche (UERJ)


Um levantamento da produção literária para crianças e jovens no que se refere à narrativa, nos primeiros anos dessa década, aponta para a retomada de clássicos universais, de clássicos brasileiros, de contos de fadas, de histórias exemplares, das mitologias grega, indígena e africana, além de temas voltados para as relações interpessoais e para o relato de vida e obra de artistas que escreveram seus nomes na história brasileira e universal.

Um olhar mais atento aos temas recorrentes denota um certo gosto pelo passado. Segundo Alfredo Bosi, a possibilidade de enraizar no passado a experiência atual de um grupo se perfaz pelas mediações simbólicas. Não só o gesto, o canto, a dança, o ritmo, a oração, a fala que evoca e que invoca, mas tudo isso junto estabelece, através da religião, um vínculo entre presente e o outrora-tornado-agora, laço da comunidade com as forças que a criaram em outro tempo e que sustêm a identidade.

Heloísa Buarque de Holanda chama atenção para o perigo de centralizar as atenções na escritura, na linguagem, sem articular com o social, onde esta se configura. (RICHE, 1995:155). Assim, para estudar e compreender as narrativas orais e escritas que traçam a história da literatura infantil e juvenil contemporânea dialogamos com Alfredo Bosi ao acreditar que as relações entre os fenômenos sociais deixam marcas no corpo da linguagem. Essas relações tornam-se mais claras ao investigarmos a origem das palavras cultura, culto e colonização que descendem de um mesmo verbo latino colo, cujo particípio passado é cultus e o particípio futuro é culturus. (BOSI, 1992: 110).

Cultura e linguagem andam na mesma direção. Os símbolos, os ritos, as narrativas da criação, queda e salvação recompõem, no sentido de uma totalidade ideal, o dia-a-dia cortado pela divisão econômica e oprimido pelas hierarquias do poder e deixam reflexos na linguagem.

O estudo da origem das palavras estreitam esses laços. De cultum, supino de colo, deriva outro particípio: o futuro, culturus, o que se vai trabalhar, o que se quer cultivar (BOSI, 1992: 160). Esse termo, na sua forma substantiva, aplicava-se tanto às labutas do solo - agricultura -, quanto ao trabalho feito no ser humano desde a infância; e nesta última acepção vertia romanamente o grego Paidéia. Agricultura, cultura, educação e linguagem estão intimamente relacionadas.

O significado geral de cultura aplica-se até nossos dias. Ela é o conjunto de práticas, técnicas, dos símbolos e dos valores que devem se transmitir às novas gerações para garantir a reprodução do estado de coexistência social. A educação é o momento institucional marcado do processo.

Assim, nesta perspectiva antropológica, identidade e cultura, enquanto resgate da experiência, via memória e o registro dessa experiência, através da escritura, articulam-se. Cultura e memória caminham juntas. E é nessa memória ancestral que autores da literatura infanto-juvenil contemporânea parecem buscar inspiração. Uma análise comparativa dos títulos publicados e dos premiados pela FNLIJ nos quatro primeiros anos dessa década confirmam essa hipótese.


A retomada dos mitos

Desta linhagem fazem parte os mitos indígenas, os africanos e os gregos.

Quanto aos mitos indígenas, vale registrar O Livro das Árvores, uma obra que reúne informações sobre o cotidiano dos índios ticunas, seus mitos, lendas e crenças, além de um inventário da fauna e flora brasileiras relatados e narrados não sob o ponto de vista do dominador, mas sob o olhar do dominado, o índio.

A obra, publicada inicialmente pela Organização Geral dos Professores Ticuna Bilíngües em 1997, de circulação restrita até ser publicada pela Global, inaugura uma tendência da literatura brasileira que vai se confirmando ao longo da década.

Embora no ano anterior, 1996, o índio Daniel Munduruku tivesse publicado Histórias de índio pela Cia das Letrinhas, O Livro das Árvores, por ser uma obra coletiva, marcou um diferencial no mercado editorial. Outras obras foram publicadas e passam a chamar a atenção da crítica especializada e, sete anos depois, em julho de 2003, Munduruku ganha o Prêmio Érico Vanucci em cerimônia promovida pelo CNPq e pela SBPC. O prêmio é uma homenagem a Érico V. Mendes, que participou ativamente de movimentos culturais do país e é considerado um estímulo aos pesquisadores que seguem os mesmos caminhos trilhados por ele.

De “ objeto da ciência”, o índio quer tornar-se “ sujeito da ciência”. É o próprio Munduruku, por ocasião do Prêmio, ao propor a inclusão do conhecimento indígena na programação das Reuniões Anuais da SBPC, que confirma:

Se por muito anos, o indígena era apenas personagem dos contos, histórias e ficções do não-indígena, de um tempo para cá, ele passou a ser protagonista da história, de sua própria história. Ele começou a criar e a oferecer para os parwat seu próprio ponto de vista sobre a realidade que vive.

Ele passou a descrever o Brasil sob sua ótica

Daniel correu riscos, em muitas ocasiões teve dúvidas, medo de estar congelando a tradição, paralisando a dinâmica da oralidade. O processo não foi tranqüilo, mas como ele mesmo diz:

Precisei voltar ao lugar onde me aceitei índio. Voltei à fonte. Fui ouvir o rio. Sentei-me num lugar onde um dia, meu avô colocou-me para aprender a escutar. Lá sozinho, fiz as mesmas perguntas ao velho avô e ouvi a mesma resposta de trinta anos atrás:

Se o rio parasse diante dos obstáculos, ele nunca contemplaria a beleza do mar.

Ao receber o Prêmio pelo conjunto de sua produção literária, Daniel “cria uma caminho para que outros parentes indígenas possam trilhá-lo”. (Notícias 9- set 2003 p. 11).

Voltando aos estudos de Bosi, as acepções do verbo latino cultum, particípio passado colo e o particípio futuro cultus, culturus dialogam entre si nessa vereda aberta por Daniel Munduruku. A força da trabalho, as relações com a natureza, com a cultura e a linguagem, a consciência grupal, os símbolos e valores a serem transmitidos às novas gerações, inerentes ao conceito de cultura, estão presentes e re-velados pela linguagem nas obras desse índio.

O desejo de que outros parentes possam trilhar seu caminho torna-se realidade. A semente plantada com o livro Histórias de índio, publicado em 1996, germinou e continua dando frutos. A Coleção Memórias Ancestrais, coordenada por Manduruku, reúne livros escritos por autores índios pertencentes a diferentes povos indígenas como os, Nambikwara, Satirê, Mawé, Guarani. Outra coleção editada pela Peirópolis é a “Palavra de índio” que publicou Iarandu: o cão falante e Xerekó Arandu: a morte de Kretá de Olívio Jukupé. Outros títulos são publicados por diferentes editoras como O povo Pataxó e sua história de Angthichay Pataxó pela Global, 1997 e Txopai e Itôhã história contada por Apinhaera Pataxó pela Formato 2000.

De Munduruku são também Coisas de índio: versão infantil (Callis, 2000), considerado Altamente Recomendável pela a FNLIJ, As serpentes que roubaram a noite e outros mitos (Pierópolis, 2001 Coleção Memórias Ancestrais), Meu avô Apolinário: um mergulho no rio da (minha) memória (Stúdio Nobel, 2001) que recebeu Menção Honrosa no Prêmio Tolerância da UNESCO em 2003, Você lembra, pai? (Global: 2003) que deu a Rogério Borges o Prêmio de Melhor Ilustração, O Sinal do Pajé (Pierópolis 2003) e O segredo da chuva (Ática, 2003) que recebeu o Prêmio Ofélia Fontes, O Melhor para Crianças, do Júri da FNLIJ. Desse mesmo ano é Verá, o contador de histórias de Olívio Jukupé com ilustrações das crianças Guarani (Peirópolis, 2003) da Coleção Memórias Ancestrais: povo Guarani.

Dentre as obras publicadas sobre o resgate da sabedoria ancestral escritas por não-índios, como qualificou Munduruku, que chamaram a atenção da crítica especializada e merecem registro está O Casamento entre o céu e a terra: contos dos povos indígenas do Brasil de Leonardo Boff (Salamandra, 2001). Além de relatos, contos, mitos e informações sobre o cotidiano, a obra contém ampla pesquisa sobre o legado humanístico e a contribuição dos povos indígenas ao Brasil e à globalização bem como a lista de povos indígenas do Brasil contemporâneo e as organizações de apoio. A obra recebeu o Prêmio Figueiredo Pimentel- O Melhor Livro Reconto de 2002 da FNLIJ.

Os mitos africanos

Do viés da memória, fazem parte também os mitos africanos. Desde Monteiro Lobato com as Histórias de Tia Nastácia, passando por Joel Rufino dos Santos e Rogério Andrade Barbosa, essas histórias trazem para o leitor todo o imaginário africano que ajudou a forjar a identidade brasileira.

Joel Rufino, pesquisador das raízes históricas brasileiras, publicou muitos livros voltados para o público adulto. Como escritor para crianças, reescreve episódios da história brasileira a partir da visão do “outro”, dos anônimos, dos esquecidos ou explorados. O autor fala como foram silenciados negros e índios. História e Literatura aqui se fundem. O autor começou a publicar suas primeiras histórias em 1973, na Revista Recreio, reinventando contos e lendas do nosso folclore. Entre 1984 e 1986, publica a Coleção Curupira com seis volumes (NOVAIS, 1995: 482) e mais tarde, Gosto de África: histórias de lá e de cá, em 1999 pela Global.

Dando continuidade a essa mesma linha, baseado na experiência como professor voluntário das Nações Unidas, ensinando crianças na Guiné Bissau, Rogério Andrade Barbosa publicou a Coleção Bichos de África (Melhoramentos,1987) com ilustrações criadas por Ciça Fittipaldi, explorando o universo fantástico e exuberante da África, com base na arte ioruba.

Essa coleção abre caminho para outras publicações como: Contos ao redor da fogueira (Agir, 1990), Duula, a mulher canibal: um conto africano (DCL, 1999), O filho do vento (DCL, 2001) e Como as histórias se espalharam pelo mundo (DCL, 2002).

Joel Rufino e Rogério abrem caminho para outros autores e pesquisadores da cultura de raízes africanas, e Reginaldo Prandi publica Ifá, o adivinho (Cia das Letrinhas, 2003). As histórias se baseiam no livro Mitologia dos orixás (Cia das Letras, 2001), escrito para “gente grande” pelo qual recebeu, assim como Munduruku, o Prêmio Érico Vannucci Mendes. Ifá, o adivinho recebe dois prêmios: O Melhor Reconto pelo texto e Revelação Ilustrador pelas ilustrações de Pedro Rafael. Ainda na esteira dos mitos africanos, Prandi publica em 2003, Xangô, o trovão- outras histórias dos deuses africanos que vieram ao Brasil com os escravos (Cia das Letrinhas).

Outros autores fizeram incursões esporádicas nessa área como Heloísa Preito com Histórias da Preta e Julio Emílio Braz com Lendas Negras (FTD).


Um caldeirão de misturas...

Uma tendência enraizada na oralidade que remete à cultura popular de origem variada e mistura crenças, festas, mitos, causos, cantigas anônimas já tem um espaço garantido na obra de alguns autores brasileiros.

De Lobato, passando pelas pesquisas de Câmara Cascudo, o fio dessas narrativas orais chega até os títulos publicados mais recentemente. Só para registrar alguns, temos a Coleção O folclore do Mestre André de Marcelo Xavier (Formato 2000) com os títulos: Mitos, (1997), Festas (2000) e Crendices (2001) que foi condecorada com o Melhor Projeto Editorial.

Também de 1997 é Meu livro do folclore de Ricardo Azevedo (Ática). Entusiasmado com o tema, o autor passa a pesquisar o folclore brasileiro e publica Armazém do folclore (Ática). A obra traz uma seleção de textos variados e cumpre o papel importante de levar o leitor a conhecer um pouco mais do imaginário popular que marca a identidade cultural brasileira.

Nessa mesma linha, Ana Maria Machado publica Histórias à brasileira: a Moura Torta e outras histórias (Cia das Letrinhas, 2002) e ganha o Prêmio Figueiredo Pimentel “Hors Concours” - Melhor Reconto da FNLIJ.

Bem antes, no início dos anos 1990, Ângela Lago outra ilustradora que também passa a escrever histórias, se encanta com a riqueza da tradição popular e publica Sua Alteza, a Divinha (RHJ: 1990) e dois anos depois, (RHJ,1992), De Morte. Mais recentemente, ganha o Prêmio “Hors Concours” - O Melhor para crianças 2002 com Sete Histórias de Sacudir o Esqueleto (Cia das Letrinhas, 2002)

Mitologia grega

Essa é, sem dúvida alguma, uma temática que congrega leitores de todas as idades. Monteiro Lobato traduziu, em linguagem mais acessível para o pequeno leitor, os grandes feitos heróicos da galeria de deuses e semideuses gregos.Transportado para a Grécia Antiga, o pequeno leitor entra na história e junto com Visconde, Emília, Pedrinho e Narizinho assiste ao poderoso Hércules ou Héracles vencer o Leão da Neméia.

Esse pontapé inicial dado por Lobato na literatura infanto-juvenil brasileira, que alimentou o imaginário de muitos escritores na infância, motivou aqueles que foram seus leitores e hoje escrevem para crianças a publicar obras sobre o tema.

Muitas editoras trazem em seus catálogos textos traduzidos, adaptados e mesmo recontados da mitologia grega. O filão é riquíssimo por isso, sem pretender esgotá-lo, selecionamos algumas publicações para registrá-las aqui. A Coleção Mitos e Lendas da Editora Ática, premiada pela FNLIJ, dedica um volume às histórias da mitologia grega, mas traz também títulos sobre outras mitologias, acompanhados de um texto informativo que situa o leitor no contexto da época. A FTD publica a Coleção Contos da Mitologia com fascículos dedicados a cada uma das histórias: O ouro de Midas, A beleza de Narciso entre outros. Mônica Stael traduz para a Martins Fontes uma coleção de três volumes voltada para o público juvenil. Cada um dos volumes é dedicado a uma cultura: As Mais Belas Lendas da Mitologia, Deuses e Heróis da Mitologia Grega e Latina (2000) e As Mais Belas Lendas da Idade Média (2001). A coleção Jovens Inteligentes de Domício Proença Filho, publicada pela Global, reúne também as Estórias da Mitologia Grega em três volumes (2000).

Há muitas outras publicações sobre o tema que merecem destaque pelo cuidado com o texto e com a ilustração; fica aqui apenas o registro de algumas delas.

A retomada dos clássicos universais

Em “Como e porque ler os clássicos”, Ana Maria Machado fala do fascínio que as “ novelas de cavalaria’ exercem em leitores de todas as idades.

Esse sucesso consolida-se e vem a público quando, em maio de 2002, uma comissão formada por escritores notáveis de 54 nações reunidas pelos editores do Clube do Livro da Noruega, elegeram D. Quixote de la Mancha “ a melhor obra de ficção de todos os tempos. Publicado pela primeira vez em 1605, depois da Bíblia, é o livro traduzido em mais língua do planeta.

Narradas em livros, nas diversas versões, e também representadas no cinema, na TV em quadrinhos e animações, as lendárias Aventuras do Rei Artur e os Cavaleiros da Távola Redonda de Carlos Magno, de Ricardo Coração de Leão fazem parte de um imaginário que parece inesgotável. E sempre surge uma maneira de contar essas histórias épicas entremeadas de heroísmo e magia. As histórias de cavalaria deram origem a obras primas da literatura universal, um dos clássicos que foram fundo na análise do espírito humano de forma emocionante e divertida.

Monteiro Lobato já havia percebido esse fascínio ao escrever D. Quixote para crianças contado por D. Benta. Mais recentemente, com ilustrações de Gustave Doré, traduzido e adaptado por Ferreira Gullar, D Quixote de La Mancha (Revan, 2002) recebe o Prêmio M. Lobato de Melhor Tradução Jovem da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil; também do mesmo ano é a tradução e adaptação de Walcyr Carrasco.

No ano seguinte, 2003, a editora Ática publica a obra adaptada por Michel Harrisson, traduzida do original em inglês por Luciano Vieira Machado. Outras traduções e adaptações do original de Miguel de Cervantes para crianças e jovens surgiram anteriormente em 1998, pela editora Callis, além de revisitações à obra com títulos como: Vida e Proezas de D. Quixote de Erich Käster (Melhoramentos, 1968) e D Quixote no Brasil (Loyola, 1989).

Além das histórias do cavaleiro andante e do lendário Rei Artur, há também um interesse pelas histórias de Shakespeare publicadas por várias editoras. Gostaríamos de citar aqui a coleção da editora Dimensão pelo texto, ilustrações e projeto gráfico que são um convite à leitura.

A Ática lança em 2002, nos moldes das antigas coleções de clássicos para crianças e jovens, a Coleção Tesouro dos clássicos. Marcada também pelo resgate da memória, duas coletâneas passam a fazer parte da lista de títulos do Acervo Básico de 2002 da FNLIJ: O tesouro das virtudes para crianças e o Tesouro das cantigas para crianças, seleção de Ana Maria Machado para a Editora Nova Fronteira. Da Série Reconto Infantil, a editora Scipioni publica clássicos adaptados para crianças (2001-2002).

A cada ano, mais editoras brasileiras publicam clássicos universais em edições caprichadas e traduções feitas por autores consagrados da literatura infanto-juvenil brasileira. Assim Marina Colasanti recebe o prêmio de Melhor Tradução para criança “Hors Concours” com As aventuras de Pinóquio, da Cia das Letrinhas.

Ainda dentro da linha das coletâneas traduzidas, destaca-se a Coleção Contos e Poemas para Crianças Extremamente Inteligentes de Todas as Idades (primavera, outono, verão), seleção de Harold Bloom (Objetiva 2003), que recebeu o Prêmio A Melhor Tradução Jovem de 2004 da Fundação.

Dentre as muitas narrativas de aventuras, Robinson Crusoé, sempre está em cena. Seja na tradução do original, ou no reconto a obra sempre reaparece em novas edições. Um dos destaques é a coleção da Cia das Letrinhas, traduzida por Hildegard Feist e ilustrada por Julek Heller. Dentre os títulos de que se compõem a coleção, ressaltamos: Robin Hood, Robinson Crusoé, Rei Artur dentre outros. Em 2003, a história de Robinson Crusoé volta à cena recontada por Fernando N. Rodrigues, publicada pela DCL; as ilustrações de Marcelo Ribeiro ganham o Prêmio Melhor Ilustração de 2004.

Voltada para o leitor pouco experiente, a Scipioni lança a Série Reconto Infantil que reúne clássicos adaptados para crianças.

Traduzidas do original ou adaptadas, com ou sem ilustrações, as obras ganham novas roupagens para melhor se aproximarem do público. Algumas adaptações merecem uma análise mais apurada, pois sob pena de “adaptar” a obra para um leitor menos inexperiente, acabam por resumir demasiadamente o texto roubando-lhe o que ele tem de melhor.

Retomada dos clássicos brasileiros

Na tentativa de aproximar o leitor da obra dos clássicos brasileiros, Fita verde no cabelo, conto publicado em Ave Palavra, é pinçado da obra de Guimarães Rosa e ganha uma nova roupagem com as ilustrações de Roger Mello. A obra, também premiada pela FNLIJ, é uma releitura de Chapeuzinho Vermelho.

Na esteira dos clássicos ilustrados para crianças são publicados, com ilustrações e projeto gráfico primorosos, Conto de Escola (Cosac & Naify, 2002) e pela Dimensão (1999), Um apólogo de Machado de Assis e a Galinha cega de João Alphonsus (DCL, 2003), além de nova edição ilustrada de Xerimbabo de Raquel de Queirós (José Olympio).

Para atrair a atenção dos jovens e familiarizá-los com textos consagrados da literatura dita adulta, surgem no mercado editorial coletâneas de contos, publicados por várias editoras. Dentre elas, ressaltamos Contos de Machado de Assis e Contos de João Alphonsus com ilustrações em preto e branco (DCL), acompanhadas de um glossário e de um pequeno histórico da obra e vida do autor para orientar o leitor.

Retomada dos Contos de Fadas

A linhagem dos contos de fadas é uma das mais ricas. Desde as traduções, adaptações e recontos até os contos modernos passando pelas paródias, surgem a cada ano novas edições. Aqui também há que se observar o cuidado na escolha da edição. Com vistas a um mercado consumidor ávido por clássicos já consagrados pelo público adulto a preços mais baratos, algumas publicações primam por ilustrações de baixa qualidade acompanhando traduções e versões pouco fiéis aos textos originais.

Sem nunca terem saído totalmente do cenário, os contos de fadas são sempre relidos e revisitados também através da paráfrase e da paródia. Desde Monteiro Lobato até os autores contemporâneos como Marina Colasanti, Ruth Rocha, Ana Maria Machado e Flávio de Souza dentre outros, o filão não se esgota e tem público garantido.

Quanto às traduções publicadas com projeto gráfico e ilustrações que merecem destaque, Histórias de Cisne de Hans Christian Andersen (Cia das Letrinhas, 2002) merece registro e prêmio de Melhor Tradução/Criança 2003.

Vale ressaltar também as edições traduzidas, acompanhadas de várias versões do mesmo conto, organizadas por estudiosos da literatura infantil universal e ilustradas como a de Maria Tatar publicada pela Jorge Zahar em 2004. Além de divertir, essas publicações trazem ao conhecimento do grande público versões que ficariam restritas aos estudos acadêmicos.


Relações interpessoais

As relações interpessoais têm sido alvo de estudos nas mais diferentes esferas do conhecimento, e a literatura espelha essa tendência. As obras retratam dramas pessoais, mergulham na alma humana na tentativa compreendê-la melhor.

A literatura infanto-juvenil por muito tempo acreditou que eram temas inadequados ao pequeno leitor. Os editores e autores não haviam se dado conta de que os contos de fadas, assim como a vida, nem sempre terminam com o “ felizes para sempre”. Com o tempo o ciúme, o egoísmo, a falta de solidariedade, o ódio e todos os defeitos que marcam a nossa humanidade passam a fazer parte do perfil dos personagens das histórias escritas para crianças e jovens.

Pelas mãos de Marina Colasanti, o leitor é levado a conhecer a mesquinhez dos sentimentos entre duas irmãs, em contos como Onde os oceanos se encontram, ou mesmo ver a personificação do Ciúme em A troca e a tarefa de Lygia Bojunga Nunes. Os dramas vividos por personagens ambíguas, dilaceradas pelo amor e pelo ódio chegam às páginas dos livros para crianças e jovens.

Nossa literatura ganhou status, representatividade e reconhecimento. Não é à toa que o Prêmio Astrid Lindgren, oferecido pelo governo da Suécia- um dos maiores prêmios literários do mundo - teve como única vencedora, nas três categorias propostas pela comissão organizadora do evento, a brasileira Lygia Bojunga Nunes, já agraciada com o Prêmio Hans Christian Andersen do IBBY, em 1982. Sem falar de Ana Maria Machado também ganhadora do mesmo Prêmio em 2002.

Com obras versando sobre essa temática na última década, incluímos também autores como Ruth Rocha, Bartolomeu Campos Queirós, com Por Parte de Pai (RHJ, 1995) e Ler e escrever e fazer conta de cabeça (Miguilim, 1996) que tratam de relações interpessoais pelo viés da memória ou mesmo Bia Hetzel com Cristaleira (Ediouro, 1995) que discute o drama da separação sob o olhar da criança.

Mais recentemente, o gosto pela recordação, o falar com o coração, a dor da saudade e da separação, o sofrimento pela perda no relacionamento entre avó e neta dão o tom de A menina Nina: duas razões para não chorar (Melhoramentos, 2002).

Falar de morte para crianças sem perder a esperança é o desafio de Ziraldo com sua Nina. Os fios da vida e da obra se misturam. Sem dúvida, este é o mais comovente de quantos livros o autor já escreveu para crianças porque fala de personagens reais, de sentimentos que o autor conhece profundamente. Ziraldo escreve e se inscreve na voz do narrador, personagem e espectador de sua própria história. A obra foi agraciada com o Prêmio Hors Concours O Melhor para Crianças de 2003.

E, quanto as traduções, vale registrar A redação (Record, 2003) que valeu a Antônio Skármeta os Prêmios UNESCO 2003 de Literatura Infantil e Juvenil em Prol da Tolerância e Monteiro Lobato de Melhor Tradução 2004 da FNLIJ. A questão política e tudo o que ela envolve: o medo, o patrulhamento ideológico e as relações familiares são vistas pelo olhar de um menino de cuja sensibilidade depende a integridade de sua própria família. Skármeta, através do narrador, enreda e surpreende até o leitor mais experiente que aguarda ansioso até a última página o conteúdo da redação do menino.

Retomada da vida e obra de artistas

Levar a vida e a obra de personalidades, sejam elas artistas plásticos escritores, compositores de música clássica ou popular, revelou-se um rico filão para o mercado editorial. Traduzidas ou criadas por autores brasileiros essas obras têm o mérito de levar o pequeno leitor a dar os primeiros passos no universo da arte. Algumas editoras investiram nesse filão e não se decepcionaram.

Muitas coleções merecem destaque e foram premiadas na categoria Livro Informativo. E, embora o caráter literário do texto nem sempre seja a preocupação primeira, algumas obras conseguem conciliar a narrativa ficcional com o dado informativo e um projeto gráfico de qualidade. Chama-nos a atenção a obra Linea no Jardim de Monet de Christiana Bjôrk e Lena Anderson (Salamandra 1992).

Aproximar o pequeno leitor da obra de grandes mestres da arte, sensibilizá-lo para outras linguagens tem sido o grande mérito dessas coleções que justificam a inclusão e referência nesse estudo. Algumas editores marcaram presença com publicações unindo pesquisa a uma narrativa que instiga a curiosidade do leitor despertando nele o desejo de conhecer a vida e a obra de personalidades que escreveram seus nomes na história. A Cia das Letrinhas comparece com duas coleções: A de artista com tradução de Eduardo Brandão (1999, que dedica cada letra do alfabeto a uma inicial de um pintor famoso como, por exemplo, V de Van Gogh e M de Matisse e Por dentro da arte. A Moderna traz mais duas: Mestres da Literatura e Mestres da Música (Adoniram Barbosa, Pixinguinha etc) escritas por vários autores. Já a editora Callis, na Coleção Crianças Famosas, opta por enfocar as personalidades enquanto crianças (Cecília Meireles). Esse recurso desperta a curiosidade e aproxima ainda mais o pequeno leitor da vida e da obra de personalidades desconhecidas e muitas vezes distantes do seu universo.

O gosto pelo passado, pelas histórias exemplares, a releitura de histórias antigas através da paráfrase ou da paródia, o reconto, a retomada de clássicos universais e brasileiros, dos contos de fadas tradicionais, de histórias exemplares, das mitologias de origem variada do relato de vida e obra de personagens da história universal, tendências que marcaram a produção brasileira para crianças e jovens nos últimos anos, espelham esteticamente a sociedade contemporânea em ebulição.

Dividido entre a sedução dos poderes da máquina e do consumo e da necessidade de reencontrar seu lugar no mundo, o homem busca no passado referências para entender o presente. A narrativa reflete essa necessidade do homem de se recompor. Constituída de fragmentos de memória, de fatos ocorridos na infância do personagem narrador, como ocorre na obra de Bartolomeu Campos Queirós, revisitando castelos onde vivem princesas menos ingênuas do que as suas antecessoras, reis, unicórnios como faz Marina Colasanti, invertendo as relações de poder com humor como fazem Ruth Rocha e Flávio de Souza, a narrativa para crianças e jovens ganha identidade, voz e vez.

Sem perder o caráter literário e refletindo as tendências peculiares da sociedade e do sujeito contemporâneo no mundo, esses textos apresentam uma especificidade que rima com identidade própria. O reconhecimento do valor dessa produção veio com as premiações conquistadas fora e dentro do país com o Hans Christian Andersen recebido por Lygia Bojunga e Ana Maria Machado, com a entrada de Ana Maria Machado para a Academia Brasileira de Letras e mais recentemente o Prêmio Astrid Lindgren conquistado por Lygia Bojunga Nunes.

Bibliografia

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www.fnlij.org.br

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