Por : Brodie Bruce
A Era de Ouro (1934 – 1955)
Anseio, Conceito e Preconceito
Antes de começarmos a analisar o surgimento de personagens negros nos comics books americanos, precisamos entender uma coisa que talvez muitos fãs desse tipo de arte nunca tenham percebido: os quadrinhos, tal qual a literatura, cinema, música e outras expressões artísticas, são reflexos dos anseios, conceitos e até mesmo dos preconceitos da sociedade que os produziram. Dito tudo isso, vamos dar uma boa olhada nesse período da história das histórias em quadrinhos conhecido como “Era de Ouro” e ver como surgiram os primeiros “negões” nas páginas coloridas dos gibis.
Em meados dos anos trinta, os quadrinhos já eram bastante populares, inclusive sendo fator decisivo para a maior ou menor venda da maioria dos jornais da América. Com o surgimento dos comic books, a produção de quadrinhos atingiu níveis industriais e sua popularidade junto à criançada alcançou patamares inimaginados pelos artistas, editores e proprietários de editoras e distribuidoras. Só que, naquele momento específico da História Americana, as relações raciais estavam bem longe de ser o que hoje chamaríamos de “ideal”. Ora, mesmo nos estados mais “liberais” como Nova Iorque e Illinois havia bairros específicos para negros e até mesmo as tropas que lutavam na Segunda Guerra Mundial e as bandas de jazz eram completamente segregadas. Infelizmente, seja por preconceito ou talvez por medo de enfrentar setores mais conservadores da sociedade americana, foi com essa “visão de mundo” que os artistas e editores criaram os primeiros personagens negros dos comics.
Cena de Donald na África
Em suas primeiras aparições, os negros estavam restritos basicamente a dois tipos de situações: ou eram coadjuvantes passageiros em histórias de personagens já estabelecidos ou então atuavam como personagens fixos e humorísticos. Em ambas, ficavam patentes os estereótipos daquilo que deveria em tese ser um “homem negro”: lábios grossos e caricaturados, péssimo uso da Língua Inglesa e inteligência no mínimo limitada. Vamos usar como exemplo da primeira situação, uma das melhores histórias que o Mestre Carl Barks criou para o Pato Donald, história essa conhecida no Brasil como “Donald na África” (Voodoo Hoodoo, publicada pela primeira vez em 1949).
Capa de Young Allies, com Whitewash
Nessa história, vemos Donald sendo envenenado por um zumbi africano chamado “Corongo”. No desespero pela sua eminente morte, o pato recebe a visita de seu parente mais próximo, o milionário Tio Patinhas. Patinhas conta então a origem do “Corongo”: durante a juventude, o velho sovina se aventurou pela África e expulsou de uma determinada região uma tribo que há séculos vivia no lugar. Como vingança pelo crime, o feiticeiro da tribo ordenou que o tal zumbi de nome “Corongo” perseguisse o pato pão-duro pelo mundo inteiro e o envenenasse com uma fórmula que, três dias após a inoculação, o encolheria ao tamanho de um inseto. Ora, como o “Corongo” era burro como uma porta, ele não percebeu que os anos se passaram e pensou que Donald, na flor da idade, era o mesmo pato que surrupiou as terras da sua tribo. Não restava outra opção a Donald e seus sobrinhos senão viajar para África e pedir ao feiticeiro que desfizesse os efeitos da poção. Ao chegar ao Continente Negro, o nosso simpático herói se depara com habitantes locais caracterizados conforme todos os estereótipos citados acima e um pouco mais: os nativos ou eram supersticiosos e covardes, ou então eram picaretas dispostos a faturar “alguma grana” em cima do homem civilizado.
Último quadro de “Judgement Day”
Devido ao seu conteúdo pra-lá-de-politicamente-incorreto, “Donald na África” teve diversas de suas cenas alteradas ou simplesmente apagadas quando foi publicada ou republicada ao redor do mundo. Tanta polêmica fez o roteirista/desenhista Keno Don Rosa admitir que por pouco não ignorou completamente “Donald na África” quando resolveu criar em 1996, uma história que contasse a origem e vida do Tio Patinhas (A Saga do Tio Patinhas). A solução parcial que Don Rosa deu para as situações constrangedoras mostradas na história foi atribuir a pilantragem que Patinhas cometeu contra a tribo africana a uma fraqueza momentânea de caráter do pato milionário. Porém, a bem da verdade, Carl Barks não fez nada muito diferente do que era feito em outras histórias da época. As situações mostradas em “Donald na África”, fossem por um prisma mais sério ou cômico, praticamente eram o principal clichê nas histórias de aventureiros da selva como Fantasma, Jim das Selvas, Ka-zar e Tarzan.
Detalhe da capa de Weird Fantasy #18
Agora que passamos pelos personagens ocasionais, devemos analisar como eram os personagens fixos que apareciam nas histórias do período. Tais personagens geralmente eram colocados para fins humorísticos e seus nomes invariavelmente carregavam uma grande, digamos assim, “ironia” em relação à própria cor da pele. Nesse caso, vamos pegar duas figurinhas típicas da época e que praticamente simbolizam todos os outros “negões”: “Withewash Jones” e “Ébano Branco”.
Ébano em destaque na capa de Spirit
Whitewash, que foi o primeiro personagem negro de destaque na Marvel, fazia parte de uma equipe de jovens heróis chamada “Young Allies”, equipe essa que tinha entre seus membros os “sidekicks” do Capitão América e Tocha Humana, respectivamente Bucky e Centelha e que teve vários de seus roteiros assinados por um Stan Lee em início de carreira. Vestido como supostamente os “manos” do Harlem na época se vestiam, cabia a Withewash duas funções na equipe: ser salvo pelos poderosos parceiros juvenis e garantir as gargalhadas com seu jeito atrapalhado.
Visual clásico de Lothar, o parceiro de Mandrake
Uma linha parecida seguia Ébano Branco, um dos principais coadjuvantes da maravilhosa série “Spirit” de Will Eisner. Ébano acompanhava o herói de Central City por todos os lados e a sua marca registrada era sua maneira “peculiar” de falar: “Seu Sprit, eu quero ajudá ôce di qualquer jeito, seu Sprit!”. Mesmo sendo um dos personagens favoritos de Eisner, que chegou a criar algumas histórias-solo para ele, o Grande Mestre admitiu anos depois que “errou a mão” quando criou Ébano Branco e que o parceiro do Spirit foi elaborado dentro daquilo que era considerado “engraçado” nos anos quarenta.
Capa de All Negro Comics
Porém, os personagens negros não apareciam somente como motivo de piadas. Ocasionalmente eles eram vistos em situações mais sérias. E o primeiro personagem negro “sério” a obter sucesso e um dos mais longevos é “Lothar”, criado por Lee Falk para a série “Mandrake, o Mágico”. Lothar apareceu desde o início das aventuras de Mandrake em 1934 e o seu conceito era bem interessante: herdeiro de uma confederação tribal africana chamada “Sete Nações”, ele abandonou suas obrigações reais para acompanhar o mágico em suas aventuras ao redor do mundo. Apesar da sua suposta seriedade, Lothar ainda não fugia dos estereótipos com os quais os africanos eram caracterizados nos comics: ele usava um barrete turco na cabeça, se vestia com pele de leopardo e tanguinha, mal falava, e quando o fazia era em um inglês sofrível e sua participação nas histórias era restrita a exibições de sua grande força física.
Ace Harlen, uma das estrelas de All Negro Comics
:: A Era de Ouro (1934 – 1955)
Anseio, Conceito e Preconceito
Antes de começarmos a analisar o surgimento de personagens negros nos comics books americanos, precisamos entender uma coisa que talvez muitos fãs desse tipo de arte nunca tenham percebido: os quadrinhos, tal qual a literatura, cinema, música e outras expressões artísticas, são reflexos dos anseios, conceitos e até mesmo dos preconceitos da sociedade que os produziram. Dito tudo isso, vamos dar uma boa olhada nesse período da história das histórias em quadrinhos conhecido como “Era de Ouro” e ver como surgiram os primeiros “negões” nas páginas coloridas dos gibis.
Em meados dos anos trinta, os quadrinhos já eram bastante populares, inclusive sendo fator decisivo para a maior ou menor venda da maioria dos jornais da América. Com o surgimento dos comic books, a produção de quadrinhos atingiu níveis industriais e sua popularidade junto à criançada alcançou patamares inimaginados pelos artistas, editores e proprietários de editoras e distribuidoras. Só que, naquele momento específico da História Americana, as relações raciais estavam bem longe de ser o que hoje chamaríamos de “ideal”. Ora, mesmo nos estados mais “liberais” como Nova Iorque e Illinois havia bairros específicos para negros e até mesmo as tropas que lutavam na Segunda Guerra Mundial e as bandas de jazz eram completamente segregadas. Infelizmente, seja por preconceito ou talvez por medo de enfrentar setores mais conservadores da sociedade americana, foi com essa “visão de mundo” que os artistas e editores criaram os primeiros personagens negros dos comics.
Em suas primeiras aparições, os negros estavam restritos basicamente a dois tipos de situações: ou eram coadjuvantes passageiros em histórias de personagens já estabelecidos ou então atuavam como personagens fixos e humorísticos. Em ambas, ficavam patentes os estereótipos daquilo que deveria em tese ser um “homem negro”: lábios grossos e caricaturados, péssimo uso da Língua Inglesa e inteligência no mínimo limitada. Vamos usar como exemplo da primeira situação, uma das melhores histórias que o Mestre Carl Barks criou para o Pato Donald, história essa conhecida no Brasil como “Donald na África” (Voodoo Hoodoo, publicada pela primeira vez em 1949).
Nessa história, vemos Donald sendo envenenado por um zumbi africano chamado “Corongo”. No desespero pela sua eminente morte, o pato recebe a visita de seu parente mais próximo, o milionário Tio Patinhas. Patinhas conta então a origem do “Corongo”: durante a juventude, o velho sovina se aventurou pela África e expulsou de uma determinada região uma tribo que há séculos vivia no lugar. Como vingança pelo crime, o feiticeiro da tribo ordenou que o tal zumbi de nome “Corongo” perseguisse o pato pão-duro pelo mundo inteiro e o envenenasse com uma fórmula que, três dias após a inoculação, o encolheria ao tamanho de um inseto. Ora, como o “Corongo” era burro como uma porta, ele não percebeu que os anos se passaram e pensou que Donald, na flor da idade, era o mesmo pato que surrupiou as terras da sua tribo. Não restava outra opção a Donald e seus sobrinhos senão viajar para África e pedir ao feiticeiro que desfizesse os efeitos da poção. Ao chegar ao Continente Negro, o nosso simpático herói se depara com habitantes locais caracterizados conforme todos os estereótipos citados acima e um pouco mais: os nativos ou eram supersticiosos e covardes, ou então eram picaretas dispostos a faturar “alguma grana” em cima do homem civilizado.
Devido ao seu conteúdo pra-lá-de-politicamente-incorreto, “Donald na África” teve diversas de suas cenas alteradas ou simplesmente apagadas quando foi publicada ou republicada ao redor do mundo. Tanta polêmica fez o roteirista/desenhista Keno Don Rosa admitir que por pouco não ignorou completamente “Donald na África” quando resolveu criar em 1996, uma história que contasse a origem e vida do Tio Patinhas (A Saga do Tio Patinhas). A solução parcial que Don Rosa deu para as situações constrangedoras mostradas na história foi atribuir a pilantragem que Patinhas cometeu contra a tribo africana a uma fraqueza momentânea de caráter do pato milionário. Porém, a bem da verdade, Carl Barks não fez nada muito diferente do que era feito em outras histórias da época. As situações mostradas em “Donald na África”, fossem por um prisma mais sério ou cômico, praticamente eram o principal clichê nas histórias de aventureiros da selva como Fantasma, Jim das Selvas, Ka-zar e Tarzan.
Agora que passamos pelos personagens ocasionais, devemos analisar como eram os personagens fixos que apareciam nas histórias do período. Tais personagens geralmente eram colocados para fins humorísticos e seus nomes invariavelmente carregavam uma grande, digamos assim, “ironia” em relação à própria cor da pele. Nesse caso, vamos pegar duas figurinhas típicas da época e que praticamente simbolizam todos os outros “negões”: “Withewash Jones” e “Ébano Branco”.
Whitewash, que foi o primeiro personagem negro de destaque na Marvel, fazia parte de uma equipe de jovens heróis chamada “Young Allies”, equipe essa que tinha entre seus membros os “sidekicks” do Capitão América e Tocha Humana, respectivamente Bucky e Centelha e que teve vários de seus roteiros assinados por um Stan Lee em início de carreira. Vestido como supostamente os “manos” do Harlem na época se vestiam, cabia a Withewash duas funções na equipe: ser salvo pelos poderosos parceiros juvenis e garantir as gargalhadas com seu jeito atrapalhado.
Uma linha parecida seguia Ébano Branco, um dos principais coadjuvantes da maravilhosa série “Spirit” de Will Eisner. Ébano acompanhava o herói de Central City por todos os lados e a sua marca registrada era sua maneira “peculiar” de falar: “Seu Sprit, eu quero ajudá ôce di qualquer jeito, seu Sprit!”. Mesmo sendo um dos personagens favoritos de Eisner, que chegou a criar algumas histórias-solo para ele, o Grande Mestre admitiu anos depois que “errou a mão” quando criou Ébano Branco e que o parceiro do Spirit foi elaborado dentro daquilo que era considerado “engraçado” nos anos quarenta.
Porém, os personagens negros não apareciam somente como motivo de piadas. Ocasionalmente eles eram vistos em situações mais sérias. E o primeiro personagem negro “sério” a obter sucesso e um dos mais longevos é “Lothar”, criado por Lee Falk para a série “Mandrake, o Mágico”. Lothar apareceu desde o início das aventuras de Mandrake em 1934 e o seu conceito era bem interessante: herdeiro de uma confederação tribal africana chamada “Sete Nações”, ele abandonou suas obrigações reais para acompanhar o mágico em suas aventuras ao redor do mundo. Apesar da sua suposta seriedade, Lothar ainda não fugia dos estereótipos com os quais os africanos eram caracterizados nos comics: ele usava um barrete turco na cabeça, se vestia com pele de leopardo e tanguinha, mal falava, e quando o fazia era em um inglês sofrível e sua participação nas histórias era restrita a exibições de sua grande força física.
A caracterização do príncipe africano só começou, digamos assim, a “melhorar”, a partir de 1965, com a entrada do desenhista Fred Fredericks na criação das histórias. A partir da chegada de Fredericks, o personagem deixou de ser um mero acompanhante parrudo do Mandrake para se tornar de fato e de direito, um amigo e “igual” do mágico, e sua herança e dignidade de herdeiro de um reino na África foram colocadas em primeiro plano nas histórias. Isso sem falar que o seu domínio do Inglês melhorou substancialmente...
É claro que os estereótipos citados acima incomodavam algumas pessoas, especialmente aquelas que militavam no incipiente movimento negro que começava a tomar forma nos Estados Unidos. Um desses “incomodados” era o jornalista Orrin C. Evans. Evans era membro militante da histórica organização NAACP (sigla para Associação Nacional pelo Progresso das Pessoas de Cor) e foi um dos primeiros afro-americanos a obter destaque na imprensa americana, sendo considerado por isso até hoje o “patriarca dos jornalistas negros”. Além de todos os predicados citados, Evans tinha uma qualidade ainda mais rara naqueles tempos: ele acreditava firmemente no potencial educativo dos quadrinhos, isso quando essa forma de arte começava a ser responsabilizada por todos os “males” que acometiam a juventude americana.
Acreditando que heróis negros poderiam ser uma referência positiva para todas as crianças afro-americanas, Evans convocou diversos colegas cartunistas com quem trabalhou em vários jornais e juntos eles elaboraram aquele que seria o primeiro comic book étnico do mercado americano. Tal gibi recebeu o nome de “All Negro Comics” e a data de publicação que consta na capa é Junho de 1947.
Nas suas páginas, entre diversas HQ’s curtas de humor, dois personagens se destacavam: Ace Harlem, criado pelo desenhista John Terrell, era um detetive particular negro e classudo que, como o próprio nome já diz, investigava crimes no bairro do Harlem, na cidade de Nova Iorque. O outro era “Lion Man”, que foi desenvolvido pelo irmão de Orrin C. Evans, George J. Evans Jr., como um jovem cientista americano que é enviado pela ONU para investigar uma misteriosa “montanha mágica” na Costa do Ouro. Ao chegar ao local, ele descobriu que a tal “montanha mágica” era na verdade uma gigantesca mina de urânio. Decidido a proteger tal reserva da mão de criminosos, ele decide permanecer no local, usa um órfão chamado Bubba como parceiro, adota o nome de Lion Man e se transforma na prática em uma espécie de “Tarzan Negro”. Apesar das histórias até serem boas para o padrão da época, problemas com fornecedores de papel fizeram com que somente a edição número 1 de All Negro Comics fosse publicada.
Quando a América entrou nos anos cinqüenta, alguns editores espertamente perceberam que havia um mercado consumidor negro, e que até poderia render algum dinheiro criar alguns produtos específicos para ele. A editora Fawcett publicou uma revista chamada “Negro Romance”, em 1955, e alguns atletas negros como Joe Lewis e Jack Robinson, chegaram a ter suas biografias quadrinizidas. Infelizmente, essas foram tentativas esparsas de publicar personagens negros e até mesmo a Marvel, que na época se chamava Timely/Atlas, se aventurou nessa seara, lançando na revista Jungle Tales #01, em setembro de 1954, aquele que seria com certeza o primeiro herói negro de todo o seu elenco de maravilhosos personagens: “Waku, Prince of Bantu”.
Em suas histórias, que supostamente se passam entre o final do século 19 e início do século 20, Waku é retratado como o príncipe herdeiro de uma tribo de etnia bantu e que é obrigado pelo seu pai, que estava no leito de morte, a fazer um juramento de não-violência. Posteriormente, Waku é forçado a quebrar esse juramento quando o seu rival pela liderança da tribo, Mabu, se alia a caçadores brancos e escraviza todo o povo Bantu. Após a quebra da promessa, o espírito de seu pai surge e o desobriga do juramento de não-violência e aí Waku se torna de fato o rei dos Bantu. Waku, Prince of Bantu teve pouquíssimas histórias publicadas e não foi possível determinar quem foram os seus criadores, e até hoje o personagem se encontra no Limbo dos Quadrinhos. Quem sabe algum dia alguém resgata esse personagem, não é?
Ao ler esse artigo sobre a representação dos negros nos quadrinhos da Era de Ouro, não devemos chegar a conclusão óbvia que artistas como Stan Lee, Eisner, Falk e Barks eram membros de carteirinha da Ku Klux Klan apenas por causa dos personagens estereotipados que eles criaram. Muito longe disso! Tanto eles quanto a maioria das pessoas dentro da indústria dos quadrinhos até que tinham posições políticas liberais, só que eles eram homens dos anos quarenta que viviam nos anos quarenta e eles mesmo sentiam na pele o preconceito, seja pela origem judaica, como no caso de Eisner, seja por trabalharem em uma forma de entretenimento que supostamente “corrompia menores”. E foi dentro das páginas coloridas dos gibis que alguns dos primeiros e mais pungentes libelos anti-racistas foram publicados nos Estados Unidos.
A editora EC Comics, que foi responsável por uma avassaladora revolução artística dos quadrinhos nos anos cinqüenta com suas revistas de terror e ficção científica, publicou pelo menos duas histórias que focavam de maneira extremamente ousada o tema do racismo nos Estados Unidos. Na história “In Gratitude”, escrita por Al Feldstein, desenhada por Wally Wood e publicada na revista Shock SuspenStories #11 de 1953, um veterano da Guerra da Coréia chamado Joe Norris, ao voltar para sua cidade no interior dos EUA, questiona seus conterrâneos pelo fato de eles se recusarem a enterrar um amigo de Norris, que morreu na guerra no cemitério da cidade. Tal enterro é proibido única e exclusivamente porque o amigo de Norris, apesar de também ter defendido o país na Guerra da Coréia, era negro.
A outra história, publicada em Weird Fantasy #18 de 1953 e intitulada “Judgement Day”, com script de Al Feldstein e arte de Joe Orlando, relata a ida de um astronauta terráqueo chamado Tarlton a um planeta chamado Cybrinia. O objetivo de Tarlton é verificar se o tal planeta é socialmente avançado o bastante para entrar na Federação Galáctica da Terra. Ao chegar em Cybrinia usando um traje espacial que lhe cobre todo o corpo, inclusive o rosto, Tarlton percebe que o planeta é habitado por robôs, que se dividem em duas castas: os laranjas dominam todas as formas de riqueza e os azuis são relegados apenas a serviços braçais. Tarlton questiona as lideranças laranjas sobre esses fatos e lhe diz que enquanto essa segregação ocorrer em Cybrinia o planeta não estará apto a ingressar na Federação Galáctica, tendo em vista que em nenhum planeta-membro ocorre discriminação. Ao retornar à sua nave, no último quadrinho, o nosso astronauta retira o seu capacete e vemos que Tarlton é um homem negro!
O prêmio que a EC Comics ganhou por tanta ousadia nos temas e pela qualidade revolucionária de suas HQ’s foi uma brutal perseguição executada por “puritanos” preocupados com a “má influência” que os gibis poderiam causar, perseguição essa que praticamente acabou com a editora.
Mas independente de tudo, nos anos que se seguiram, ainda que lentamente, mais e mais personagens negros começariam a ser retratados nas HQ’s. Mas isso é tema da segunda parte desse artigo.
Brodie Bruce, também conhecido como Claudio Roberto Basilio
crbasilio@yahoo.com.br
A caracterização do príncipe africano só começou, digamos assim, a “melhorar”, a partir de 1965, com a entrada do desenhista Fred Fredericks na criação das histórias. A partir da chegada de Fredericks, o personagem deixou de ser um mero acompanhante parrudo do Mandrake para se tornar de fato e de direito, um amigo e “igual” do mágico, e sua herança e dignidade de herdeiro de um reino na África foram colocadas em primeiro plano nas histórias. Isso sem falar que o seu domínio do Inglês melhorou substancialmente...
É claro que os estereótipos citados acima incomodavam algumas pessoas, especialmente aquelas que militavam no incipiente movimento negro que começava a tomar forma nos Estados Unidos. Um desses “incomodados” era o jornalista Orrin C. Evans. Evans era membro militante da histórica organização NAACP (sigla para Associação Nacional pelo Progresso das Pessoas de Cor) e foi um dos primeiros afro-americanos a obter destaque na imprensa americana, sendo considerado por isso até hoje o “patriarca dos jornalistas negros”. Além de todos os predicados citados, Evans tinha uma qualidade ainda mais rara naqueles tempos: ele acreditava firmemente no potencial educativo dos quadrinhos, isso quando essa forma de arte começava a ser responsabilizada por todos os “males” que acometiam a juventude americana.
Acreditando que heróis negros poderiam ser uma referência positiva para todas as crianças afro-americanas, Evans convocou diversos colegas cartunistas com quem trabalhou em vários jornais e juntos eles elaboraram aquele que seria o primeiro comic book étnico do mercado americano. Tal gibi recebeu o nome de “All Negro Comics” e a data de publicação que consta na capa é Junho de 1947.
Nas suas páginas, entre diversas HQ’s curtas de humor, dois personagens se destacavam: Ace Harlem, criado pelo desenhista John Terrell, era um detetive particular negro e classudo que, como o próprio nome já diz, investigava crimes no bairro do Harlem, na cidade de Nova Iorque. O outro era “Lion Man”, que foi desenvolvido pelo irmão de Orrin C. Evans, George J. Evans Jr., como um jovem cientista americano que é enviado pela ONU para investigar uma misteriosa “montanha mágica” na Costa do Ouro. Ao chegar ao local, ele descobriu que a tal “montanha mágica” era na verdade uma gigantesca mina de urânio. Decidido a proteger tal reserva da mão de criminosos, ele decide permanecer no local, usa um órfão chamado Bubba como parceiro, adota o nome de Lion Man e se transforma na prática em uma espécie de “Tarzan Negro”. Apesar das histórias até serem boas para o padrão da época, problemas com fornecedores de papel fizeram com que somente a edição número 1 de All Negro Comics fosse publicada.
Quando a América entrou nos anos cinqüenta, alguns editores espertamente perceberam que havia um mercado consumidor negro, e que até poderia render algum dinheiro criar alguns produtos específicos para ele. A editora Fawcett publicou uma revista chamada “Negro Romance”, em 1955, e alguns atletas negros como Joe Lewis e Jack Robinson, chegaram a ter suas biografias quadrinizidas. Infelizmente, essas foram tentativas esparsas de publicar personagens negros e até mesmo a Marvel, que na época se chamava Timely/Atlas, se aventurou nessa seara, lançando na revista Jungle Tales #01, em setembro de 1954, aquele que seria com certeza o primeiro herói negro de todo o seu elenco de maravilhosos personagens: “Waku, Prince of Bantu”.
Em suas histórias, que supostamente se passam entre o final do século 19 e início do século 20, Waku é retratado como o príncipe herdeiro de uma tribo de etnia bantu e que é obrigado pelo seu pai, que estava no leito de morte, a fazer um juramento de não-violência. Posteriormente, Waku é forçado a quebrar esse juramento quando o seu rival pela liderança da tribo, Mabu, se alia a caçadores brancos e escraviza todo o povo Bantu. Após a quebra da promessa, o espírito de seu pai surge e o desobriga do juramento de não-violência e aí Waku se torna de fato o rei dos Bantu. Waku, Prince of Bantu teve pouquíssimas histórias publicadas e não foi possível determinar quem foram os seus criadores, e até hoje o personagem se encontra no Limbo dos Quadrinhos. Quem sabe algum dia alguém resgata esse personagem, não é?
Ao ler esse artigo sobre a representação dos negros nos quadrinhos da Era de Ouro, não devemos chegar a conclusão óbvia que artistas como Stan Lee, Eisner, Falk e Barks eram membros de carteirinha da Ku Klux Klan apenas por causa dos personagens estereotipados que eles criaram. Muito longe disso! Tanto eles quanto a maioria das pessoas dentro da indústria dos quadrinhos até que tinham posições políticas liberais, só que eles eram homens dos anos quarenta que viviam nos anos quarenta e eles mesmo sentiam na pele o preconceito, seja pela origem judaica, como no caso de Eisner, seja por trabalharem em uma forma de entretenimento que supostamente “corrompia menores”. E foi dentro das páginas coloridas dos gibis que alguns dos primeiros e mais pungentes libelos anti-racistas foram publicados nos Estados Unidos.
A editora EC Comics, que foi responsável por uma avassaladora revolução artística dos quadrinhos nos anos cinqüenta com suas revistas de terror e ficção científica, publicou pelo menos duas histórias que focavam de maneira extremamente ousada o tema do racismo nos Estados Unidos. Na história “In Gratitude”, escrita por Al Feldstein, desenhada por Wally Wood e publicada na revista Shock SuspenStories #11 de 1953, um veterano da Guerra da Coréia chamado Joe Norris, ao voltar para sua cidade no interior dos EUA, questiona seus conterrâneos pelo fato de eles se recusarem a enterrar um amigo de Norris, que morreu na guerra no cemitério da cidade. Tal enterro é proibido única e exclusivamente porque o amigo de Norris, apesar de também ter defendido o país na Guerra da Coréia, era negro.
A outra história, publicada em Weird Fantasy #18 de 1953 e intitulada “Judgement Day”, com script de Al Feldstein e arte de Joe Orlando, relata a ida de um astronauta terráqueo chamado Tarlton a um planeta chamado Cybrinia. O objetivo de Tarlton é verificar se o tal planeta é socialmente avançado o bastante para entrar na Federação Galáctica da Terra. Ao chegar em Cybrinia usando um traje espacial que lhe cobre todo o corpo, inclusive o rosto, Tarlton percebe que o planeta é habitado por robôs, que se dividem em duas castas: os laranjas dominam todas as formas de riqueza e os azuis são relegados apenas a serviços braçais. Tarlton questiona as lideranças laranjas sobre esses fatos e lhe diz que enquanto essa segregação ocorrer em Cybrinia o planeta não estará apto a ingressar na Federação Galáctica, tendo em vista que em nenhum planeta-membro ocorre discriminação. Ao retornar à sua nave, no último quadrinho, o nosso astronauta retira o seu capacete e vemos que Tarlton é um homem negro!
O prêmio que a EC Comics ganhou por tanta ousadia nos temas e pela qualidade revolucionária de suas HQ’s foi uma brutal perseguição executada por “puritanos” preocupados com a “má influência” que os gibis poderiam causar, perseguição essa que praticamente acabou com a editora.
Mas independente de tudo, nos anos que se seguiram, ainda que lentamente, mais e mais personagens negros começariam a ser retratados nas HQ’s. Mas isso é tema da segunda parte desse artigo.
Brodie Bruce, também conhecido como Claudio Roberto Basilio
crbasilio@yahoo.com.br
13 de agosto de 2006
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